A minha profissão ensinou-me a compartimentar pessoas. Hoje tenho alguma especialização em dividir a personalidade como quem desmembra um carneiro, aqui a interacção, ali a estima, acolá a educação, ali ao lado o preconceito. Levei tempo a conseguir interagir com elas separadamente, mais ou menos o mesmo que demorei a separar casa-trabalho, ou outros semelhantes. A bem dizer ainda estou longe da perfeição, em uma e em outra, mas vou ficando perto, quanto mais não seja porque tento muito. Sendo assim é-me fácil estancar com garrotes uma parte protegida de alguém, e ofender-me simplesmente com a sua ira. É-me possível matar aquele lugar e enterrá-lo vivo, enquanto guardo para mim o outro lado, sem que esse sofra qualquer tipo de revolta da minha pessoa. Encarar o outro como um todo é um agente facilitador, mas enganador da existência. Faz com que por um único facto possamos desdenhar quem nos quer bem, e faz ainda com que com uma palavra branda possamos ser iludidos, presos e castigados, porque ali ao lado pode morar um pecado muito maior. Não há bondade simplesmente pura, nem maldade unicamente crua. Há convergências boas e convergências difíceis, há horas más e dias bons, há locais abençoados e sítios amaldiçoados. Não sei se poderão os entendidos catalogar esta minha estratégia como uma dissociação externa, mas eu, uma profunda desentendida, chamo-lhe mais uma simples acção, que me permite perceber o porquê do bêbedo conseguir dar-me um sorriso, o que levou uma mãe a não ensinar um filho, ou o que impeliu um marido a desproteger a mulher.