domingo, 29 de maio de 2022

urgência

Há dias em que a minha urgência não se vinga na fome, no cansaço, na rapidez de uma gargalhada ou no desconforto de umas lágrimas. Há dias em que a minha urgência é receber respostas imediatas para as perguntas de sempre. A paciência, a parcimónia, a tolerância e todos os registos calmos da existência desaparecem do meu dicionário, mergulham no breu, confundem-me as entranhas e a minha necessidade de certezas, que rebeldes como só elas sabem ser, aguardam-se escondidas  no infinito. Sei todas as lições dos livros. Conheço de cor e salteado todas as regras da calma, da clarividência, da fluidez, da inesperabilidade da vida, da impossibilidade do norte certo, do futuro concreto, do fim previsto. Sei que não há como o tempo para direccionar o percurso, e que não há melhor do que a experiência para nos construir o calo com que vamos cavando a pulso o nosso próprio colo. Mas há dias, repito, em que a minha urgência desnorteia a regra do conhecimento, rebela-me o corpo inquieto, empurra-me para uma espécie de precipício e empurra-me, sem dó nem piedade pela encosta abaixo. A mesma que enfurecida me fere, me golpeia, me massacra, me funde com ela mesma na água que escorre, na terra que salta, nos ramos que parto à minha passagem turbulenta. A urgência nunca me assiste em harmonia. A não ser, raramente, na pressa inconsequente de algum desejo.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Certezas

Um dia acordei e descobri que podia ser eu a sentir o que já escutei de vozes aflitas. Que podia ser eu a temer pelos meus dias e pelas minha noites, pelos meus sonhos escondidos e pelos meus projectos inacabados. Eu já sabia que a vida nos trai como um homem de meia idade, sedento de mudança. Sabia que ela se enche de sopros que nos encostam a paredes e a espadas, paredes duras, frias e silenciosas, espadas firmes, violentas, precisas. Nada disto me espantou. Nada disto me fez redimensionar o espaço da minha existência. Nada disto me fez acreditar mais ou menos no divino, ou procurar respostas escondidas na fraqueza da esperança. A esperança é uma fraqueza, é um encosto mortiço e frágil, derrubado por uma   brisa que parece não mover um grão de pó. O silêncio talvez seja o que mais dói, quando a esperança se aloja em nós como um bichinho de conta prestes a ser espezinhado. O silêncio na dúvida mata o sossego, derruba a mente, cria desarmonia no espaço côncavo do nosso corpo. Engraçado, mesmo que todos falem alto e ninguém se oiça no barulho, o que reina é o silêncio. Quem sabe da resposta que não queremos encontrar, quem sabe se das ausências que nos atiram ao rosto com força, como chapadas sem respeito. 


Hoje esteve sol, um sol irritante, quente, alto. Nele, como em tantas vezes, descubro a afronta comigo mesma, que em estado morno atravesso um deserto com uma porta entreaberta, que batuca ao vento: tum, tum, tum. Bate com força, teimosa na vastidão da incerteza, como que a dizer-me, sábia e persistente, que o caminho é só ali. Não me abranda a malvada, persigo-a de perto, bailo ao pé dela uma música lenta, nada condizente com a minha natureza desassossegada. Não consigo para já perceber o que pensa de mim, mas adivinho-a intrigada, agitada, desvairada no seu deserto de certezas. As certezas são sempre um susto na nossa existência. São aldrabonas, vigaristas, fazem lembrar os pregões de Lisboa. 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

busca

Grupos de mulheres são um mundo que reúne a veracidade dos opostos. Ali convergem inúmeras reacções, que encerram construções, ambições, sentimentos, projecções. Há alguns com os quais me identifico, elegem o amor e o sonho, posso acreditar ou não, mas gosto muito. Há os que se concentram na prática do quotidiano, os filhos, a casa, o supermercado mais acessível, a receita mais eficaz para a tosse. Há os que se concentram na futilidade, um território alargado e inexplicável que por vezes mata tudo quanto é verdadeiramente importante, uma espécie de vazio vestido ao rigor de uma festa com direito a passadeira vermelha, dress code, e discursos que falam sobre a fome no mundo, os animais em extinção e a fragilidade do planeta. Não sei porquê, quase todos me confundem, quase todos me fazem afastar o quanto posso da generalidade do meu género. Escapam-se muitas, novas, velhas, analfabetas ou universitárias, ricas ou pobres, sociais ou solitárias. Que conseguem olhar para a consubstancia do mundo e falar dele com o sentir de uma mártir, com a sensibilidade de um toque ao de leve, com a consciência, clara, das forças opostas, e com a vontade, inabalável, de ainda assim continuarem em busca delas. 



quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

mundo

A moral do ano é infinita. O balanço pertence a cada um, que não exista ócio na hora de nos debruçarmos sobre nós e sobre os outros. Retirei dele inúmeras situações, poucas conclusões, algumas memórias internas e eternas para a minha vida. Estou grata por tudo, é um facto, curiosamente muito grata por algumas coisas menos boas que sucederam. Nunca como hoje tive definido com tanta certeza, o que quero ter longe de mim. Com respeito, porque o mundo abraça todas as opções de vida, claro. Mas eu não sou o mundo, sou só o meu mundo e o dos meus. E é tanto, que me chega.

sábado, 12 de dezembro de 2020

certezas

As certezas absolutas são mais privadas do que o nosso corpo, por isso acreditamos tanto nelas. O nosso corpo é partilhado pela vida, pelos outros, molda-se a um abraço, a um toque, a uma esquina cheia de gente ou a uma rua vazia, carregada de nada. As certezas não. Formam-se na mais interna existência, ganham consistência com os dias, com a verificação da verdade, com o cristalizar da guarda e com as crenças que se afiguram como o caminho preciso a seguir: é por ali. Curiosamente, traem-nos à velocidade da luz. Quando menos esperamos, quanto mais certos estamos, à custa de pouco ou de nada, eis que se anulam a elas próprias, fátuas como a neblina, como se nos quisessem fazer consciencializar que a volatilidade é a única certeza do mundo ( o que transforma a dúvida, na única e permanente verdade).


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