Há dias em que esquecemos para nós o que damos ao mundo. Como se eu fosse uma mãe que ensina a andar sem me mexer e sem depositar confiança, como se eu fosse uma cozinheira que não sabe ao certo o que deveria colocar no tacho de barro, onde o coelho guisa devagarinho, na receita única e intransmissível do café da avó. Intriga-me e assusta-me, e é num ápice que toco o tormento do que me atormenta, o medo, o escuro, o corredor comprido que dividia o meu quarto do resto do mundo, na minha infância. Houve tempos em que me entreguei a ele. Percorria pé ante pé o que me separava dos meus pais, e sem que ninguém escutasse escutava eu, o som da televisão da sala, mortinha de frio, até que os dois resolviam recolher para mais perto. Nessa altura fugia de mansinho e enfiava o corpo de criança nos cobertores, certa de que os monstros teriam muito respeito à proximidade dos adultos lá da casa, os guardadores de todos os perigos, até dos imaginados. Soube fazê-lo, nunca ninguém deu por mim. Nem pelos meus medos. Houve outros tempos em que fingi que não o sentia cá dentro do meu corpo. Era hábil em escutá-lo só ao longe, numa distância de segurança que me protegia da realidade do aperto que aperta quando menos queremos, quando menos esperamos, invariavelmente, quando menos precisamos, porque tal como outras grandezas supremas de carácter inatingível, surge sempre na altura errada. Sempre sempre. Na sala de análise mais profunda,o diagnóstico foi de evitamento. Nada que me espante, nada que me atormente, nada que me tire o sono, ou não fora eu uma mestre em fingir que sou muito maior do que o que me alaga, muito mais forte do que um leão. E eis que de repente, num eco insistente e persistente, escuto por dentro do meu ouvido, e descubro que o que encaro no meu dia me ataca muito além do que eu consigo arrumar na minha noite. Me aniquila os pequenos passinhos que dou no caminho da escada, comprida, curta, estreita ou larga. E é nestas alturas, inconstantes no tempo e repetidas pela vida, que o encontro de frente no mais simples quotidiano dos dias. Nos olhos de uma amiga antiga. No cheiro de um livro descrito a preceito por quem o viveu. No corpo do velho que já se esqueceu de quem é. Um dia destes passa, claro, não sou dada a choradeiras demasiadas, aprecio mais uma serenidade. Estou errada, estou totalmente equivocada, vou no caminho totalmente inverso ao que sei ser a tábua do equilíbrio. Não serei burra, acho, demorarei a aprender, serei certamente a experiência pura da inércia de acção. E até lá, castigo, terei medo dos monstros e das bruxas medonhas que me levam durante o sono. É merecido, sim senhor.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
domingo, 26 de novembro de 2017
quarta-feira, 15 de novembro de 2017
lugares do mundo
Há sempre um momento em que a dúvida toma conta de um bocado exposto do nosso corpo. Aquele bocado que deambula entre um segredo e uma esconderijo, uma palavra inventada e uma traição, daquelas que se alojam no lugar onde os calos crescem à volta a doerem muito, sempre que um pé toca no chão. Nesses momentos, em que a pergunta assusta mais do que o breu de todos os breus, calamos a voz, na esperança de que as certezas que certificam a dúvida, não sejam mais do que uma imaginação fabulada de um conto ou de uma canção. Há histórias que retratam as nossas com a exactidão de um livro que só uma mulher sabe escrever. Nelas consigo sentir o cheiro do amor que se persegue com jeito de mansinho, discreto, doce e delicado, que nem todos sabem guardar. Consigo decifrar os segredos que engolem os homens que pensam que a única verdade do mundo, é a carne que os compõe. Consigo apanhar com uma mão cheia de letras as frases que contam as diabruras da incerteza, aquela maldita clandestina que bate até nas portas do céu. Nunca soube bem o que fazer com ela, admito, faz parte integrante do meu lado obscuro, cá bem dentro do meu peito. Já tentei várias coisas, posso garantir. Encará-la de frente foi uma delas, mas morri de morte matada. Escusar-me à sua entrada, fechar-lhe a porta, fingir que a não sinto, dar-lhe com um pau seco que apanho no caminho. Até abatê-la com um tiro, à traição, quero lá saber das honras quando o assunto me come as entranhas mais longínquas do meu ser. Nada feito, tende ao pior. A malvada adensa-se, aloja-se, cresce sem ser regada, rebenta sem ser querida, vinga, mesmo quando o meu desejo é que se esvaia já ali, numa poça de lama, numa toca de um bicho, numa maré de azar. O desejo, há, essa palavra fugidia que pertence ao vocabulário do prazer. Disse prazer? Mas que tremenda ousadia a minha, falar de um assunto que pertence ao território dos medos, de muitas mulheres em relação às vontades de todos os homens. Mas por quem me tomo eu? Continuando. Outro dia li um destes, muito apaixonante. Contava a história de uma mulher entre tantas mulheres, esposa de um homem como tantos homens, que a deixou em dúvida, como tantas dúvidas. No silêncio do quarto ela chorava lágrimas como tantas outras, enquanto aquecia um lugar vazio, como tantos vazios, cheio de nadas, como tantos espaços. O lugar aberto para a imaginação do pior era povoado por todo o mundo dos vivos, desde cobras a mulheres, desde despojos e toda a poluição. Preferiu, como tantas outras preferem, amansar o cheiro do lixo. Perfumou-o com violetas lilás do quintal de uma certa senhora, também ela na incerteza do cansaço. E na ânsia de cobrir o grito, chorou baixinho, como só uma mulher sabe chorar. Ninguém a escuta, ninguém a vê, ninguém a sente. Na verdade, ninguém sabe de quantas lágrimas vive cada uma delas. Em cada lugar, como tantos outros lugares do mundo.
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