segunda-feira, 27 de março de 2017

fome

Enquanto discutia ao telefone com o meu marido fiz uma feijoada de chocos deliciosa. Comecei por ouvi-lo nas suas razões, por entender as suas zangas, por entrar dentro dos meus pensamentos enquanto picava cebolinhas e alho em pedaços muito pequeninos, ao mesmo tempo que dos meus olhos escorriam umas lágrimas irritantes, pequeninas e amargas, que atacavam muito a minha pele e o meu olhar. Fui limpando a cara com a manga do casaco e depressa as lágrimas deram lugar a outras aflições, quando de repente, sem ver o que fazia, coloquei uma malagueta no tachinho pequenino e esfrego de novo o nariz e a boca, para enxugar o desespero. A cadência da conversa foi sempre franca e estranhamento ordenada. Forte quando eu picava a salsa, amarga quando os alhos caiam esmagados pelas minhas mãos, triste quando a cebola ditava das suas regras, mal a despia de casca, e muito doce quando o pimentão polvilhou o guisado com jeitinho, ao longe, em pinceladas coloridas capazes de apimentar qualquer espécie de união, mesmo a mais abatida pelos anos do cansaço. Dizem as más línguas que são sete os anos da discórdia, mas nós estamos muito mais longe. Conseguimos avançar na corrosão de uns bons cem anos de vida em comum, mais ou menos como quem avança perdido num destino traçado a tintas de chão, aquelas onde pisamos e repisamos e sabemos sempre para onde prosseguir, ora a direito, ora de banda, ora depressa, ora em jeito de contemplação. Por falar em contemplar, nunca deixei em momento algum de admirar o meu cozinhado. Primeiro cheirava a vinho quente, passados uns minutos tomou o gosto do marisco e do peixe, lá mais para o fim deixou que os enchidos tomassem conta daquela vida juntamente com as ervas aromáticas, e no apuramento final, já a conversa ia longa, fui ficando certa que o tempo de maturação é qualquer coisa de importante em tudo na minha vida. É no vinho que bebo, é na comida que faço, é no amor pelo meu homem. Passados cem anos estou igualzinha ao que estava quando tudo começou, na mesma medida em que a diferença se instalou. Só está cá o que me interessa, o cheiro, as facas que cortaram excessos a torto e a direito, os nós que seguram e as palavras que importam. Ele não chegou a horas de jantar comigo. Ficou preso num qualquer caminho, deve demorar uns dias, tudo tem o seu tempo. Contra o meu hábito, enfeitei a mesa como se o tivesse ali ao meu lado. Abri a garrafa para o decantador, coloquei o copo de pé alto, falei sozinha e a calma surgiu na noite, enquanto comia feijão com peixe. A nossa sorte ou o nosso azar é nunca sabermos o que perdemos, nos locais onde não estamos. Fosse de outra forma e não aguentaria os outros cem anos que me faltam, morreria de desgosto antes, numa qualquer curva, engolida por uma fome medonha de viver tudo de uma vez, em todos os lugares que nem são meus. 

quinta-feira, 23 de março de 2017

beleza

Depois do abandono tive um mau pressentimento. Achei que nunca mais na vida ia voltar a ficar inteira, aquelas palavras tinham-me arrancado um bocado enorme de juventude. Ao contrário do que se pensa a juventude não morre com os anos. Com os anos morrem as células do corpo, morrem os cabelos que enfraquecem e desistem da vida, morre a pele que endurece e mirra as veias, que parecem cansar-se de continuar a correr. Com a juventude não é assim. A juventude talvez seja dos poucos conceitos que aceita a eternidade no verdadeiro sentido da palavra eterno. O meu bisavô foi eternamente jovem, e assim permanece na minha memória. A minha bisavó foi eternamente velha e nunca rejuvenesceu, nem depois de nova, nem depois de velha, nem depois de morta. O meu marido disse-me outro dia que me tinha trocado por outra mais novinha, se é que se lembram. Disse-o com um ar sossegado a olhar as minhas pernas, como se dos olhos deles emanasse um instinto protector, escondido pela força do amor que lhe nasceu por outra. Ele não tem a culpa do que sente, já o compreendi, já lho disse bem perto dos ouvidos, baixinho, tal e qual ele me segredou o terrível delito, uns dias antes do meu perdão. Mas na verdade, fiquei terrivelmente assustada. Fiquei com umas ânsias de peito aberto, como se o sangue bombeasse desorientado em redor do meu coração, como se no cérebro algum mapa se perdesse no território do inimigo, como se acabassem de me levar para sempre as minhas mãos enfezadas, as únicas capazes de me fazer caminhar na direcção do infinito. Respirei fundo e assoei o nariz com um lenço de papel lilás com cheiro a alfazema, os meus preferidos desde sempre. Dobrei-o com muito cuidado e voltei a guardá-lo no bolso, mesmo ao lado de um rebuçado de pinhão doce, e recomecei a pensar no que afinal morrera. O que morreu não fui eu, não foi a minha juventude, não foram as minhas mãos. O que morreu não foi o meu amor, não foi a minha paixão, não foi a minha vontade de percorrer os seus olhos ao infinito de mim. O que morreu não foi a minha esperança, não foi a minha sorte, não foi a minha fraqueza ou a minha força. O que morreu foi a minha arte, e com ela todos os meus quadros, todas as minhas esculturas, todos os meus livros. E morrendo a arte, morre a beleza.  

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