domingo, 26 de novembro de 2017

castigo

Há dias em que esquecemos para nós o que damos ao mundo. Como se eu fosse uma mãe que ensina a andar sem me mexer e sem depositar confiança, como se eu fosse uma cozinheira que não sabe ao certo o que deveria colocar no tacho de barro, onde o coelho guisa devagarinho, na receita única e intransmissível do café da avó. Intriga-me e assusta-me, e é num ápice que toco o tormento do que me atormenta, o medo, o escuro, o corredor comprido que dividia o meu quarto do resto do mundo, na minha infância. Houve tempos em que me entreguei a ele. Percorria pé ante pé o que me separava dos meus pais, e sem que ninguém escutasse escutava eu, o som da televisão da sala, mortinha de frio, até que os dois resolviam recolher para mais perto. Nessa altura fugia de mansinho e enfiava o corpo de criança nos cobertores, certa de que os monstros teriam muito respeito à proximidade dos adultos lá da casa, os guardadores de todos os perigos, até dos imaginados. Soube fazê-lo, nunca ninguém deu por mim. Nem pelos meus medos. Houve outros tempos em que fingi que não o sentia cá dentro do meu corpo. Era hábil em escutá-lo só ao longe, numa distância de segurança que me protegia da realidade do aperto que aperta quando menos queremos, quando menos esperamos, invariavelmente, quando menos precisamos, porque tal como outras grandezas supremas de carácter inatingível, surge sempre na altura errada. Sempre sempre. Na sala de análise mais profunda,o diagnóstico foi de evitamento. Nada que me espante, nada que me atormente, nada que me tire o sono, ou não fora eu uma mestre em fingir que sou muito maior do que o que me alaga, muito mais forte do que um leão. E eis que de repente, num eco insistente e persistente, escuto por dentro do meu ouvido, e descubro que o que encaro no meu dia me ataca muito além do que eu consigo arrumar na minha noite. Me aniquila os pequenos passinhos que dou no caminho da escada, comprida, curta, estreita ou larga. E é nestas alturas, inconstantes no tempo e repetidas pela vida, que o encontro de frente no mais simples quotidiano dos dias. Nos olhos de uma amiga antiga. No cheiro de um livro descrito a preceito por quem o viveu. No corpo do velho que já se esqueceu de quem é. Um dia destes passa, claro, não sou dada a choradeiras demasiadas, aprecio mais uma serenidade. Estou errada, estou totalmente equivocada, vou no caminho totalmente inverso ao que sei ser a tábua do equilíbrio. Não serei burra, acho, demorarei a aprender, serei certamente a experiência pura da inércia de acção. E até lá, castigo, terei medo dos monstros e das bruxas medonhas que me levam durante o sono. É merecido, sim senhor.

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