sábado, 25 de agosto de 2018

sei lá se sabemos lá estar

É nos olhos das pessoas velhas, e nas pressas dos novos, que encontro o mundo. O tempo que depois gasto entre o caminho do que se aprende num, e do que no outro se deve aligeirar, é uma perda que eu dou por bem empregue, quase como se lesse um livro que se escreve na minha cabeça, palavra por palavra, linha por linha, sempre até um fim que pode recomeçar outra vez, mal outros olhos me cruzem no caminho. Quase nunca me esqueço de uma história, as histórias são a vida que corre num corpo que as respira sempre que acorda, com o sentido de direccionar os passos para a força da dureza da existência. Ninguém disse que a vida era fácil, diz-me sempre alguém que amo, longe, muito longe de saber que essa frase povoa a minha cabeça vezes sem conta, aninhada ao lado da magia que encontro em cada dia que nasce, exactamente porque a vida não é fácil. Os tempos mudaram, e a nostalgia do que nem vivi, por vezes faz-me pensar que algo se perdeu algures nuns anos esquecidos, tidos como muito maus, mas que fabricaram gente que não verga nem com um pau. Longe de mim crer nessa dura virtude, gostaria muito de um meio caminho, algures onde eu nasci, costumo dizer. Ali, entre o ontem e o hoje, quando as casas eram feiras de tijolo, amor e sopas de feijão com couves e azeite, e onde os dias felizes não vinham escritos nos livros, nos pacotes de bolachas e nas caixas de plástico, que decoram a mau gosto as caras e as casas. Amélia dizia-me a medo, não fosse eu julgá-la, que o marido em tempos esteve na tropa em Évora. O tenente gostou tanto dela, que lhe arranjou uma casa, para a família morar e para Alberto acabar com as amantes que tinha. - Tinha de as ter, dizia-me Amélia, - eu estava longe a dormir num colchão de palha, que morava no chão de uma sala, que se encontrava na casa de uma sogra, que tinha uma língua de fel. - Ele contou-me e eu entendi, e depois disso é que construímos a nossa vida.

As mulheres que viviam com maridos e com outras mulheres no mesmo espaço de dois corpos, viviam felizes e cientes de que a família era o centro do caminho que teremos de percorrer até ao fim de uma linha, que se abençoa aos cinquenta anos de matrimónio, tal como Amélia fez ainda há dias, entrando na igreja para renovar os votos, pelas mãos dos filhos, com o mesmo marido que a amou, a fez mãe, a trocou, a deixou sozinha e a pegou ao colo, tudo sempre com o mesmo amor. Sob o olhar atento do pároco que abençoou esta união impossível de dissolver nos caminhos da terra, e por conseguinte, rezam as lendas divinas, pelos caminhos do céu. Olhei para Amélia e ela vertia umas águas de felicidade que lambeu quando lhe chegaram à boca. Limpou os resto com a mesma cautela com que dobrava as peúgas pretas de algodão, retorcidas uma na outra, aconchegadas na ordem de sempre, soberana, linear, perfeita. Não sei ao certo ao que sabem as dela, mas as minhas, quando me escorrem pelos olhos, sabem sempre a sal, como se tivessem marinado um repouso cansado, de uma semana para a outra, sem louro ou açucares, num mosto que fermenta até uma outra estação.

Bebo um copo de vinho, devagar. Pela janela entra um ar que desperta os gatos e os insectos voadores, impossíveis no verão. Não há estrelas que norteiem os transeuntes do mundo, que se esgueiram rápido e sem destino, sempre numa diferente direcção. Em tempos, penso para mim, a vida era feita só de dor, latejava e como qualquer ferida, custava no tempo, sarava na carne, cicatrizava devagar. Hoje, nos gritos histéricos da noite, tudo passa numa fracção de um segundo, que não dói, não sabe, não cresce, não mata nem vive. Nunca estamos no sítio certo, sei lá se sabemos lá estar.

6 comentários:

  1. Este texto lembrou-me uma música da Cristina Branco - que canta tão bem as mulheres, todas as mulheres - e que se chama precisamente "Saber aqui estar". Infelizmente não a encontro online...

    Obrigada por apareceres. Sente-se muito a falta das tuas histórias. :-)

    Abraço.

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    1. Olá MP, obrigada... Nem sempre posso, mas por vezes sinto tanta falta, que apareço... Um abraço para ti :)

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  2. A vida tem tantas variações quanto olhares. Mas quando, por princípio, a tomamos por fácil estamos já a torná-la difícil.

    Que bom voltar a lê-la, CF. :)

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  3. lê-la, acrescenta-me muito, de diversas maneiras. ainda bem que voltou.

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    1. Obrigada, Ana! Volto sempre que consigo, mas menos do que gostaria...

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