domingo, 26 de janeiro de 2020

vinho tinto

A cidade estava mais fria do que o habitual. Na rotunda respirava um vento que atravessava a pele até aos ossos, os olhos das pessoas lacrimejavam num choro do corpo, consciente como só ele da agrura da nortada. Eu olhava entretida para as pedras da calçada, enquanto os meus pés, rápidos e certeiros, procuram um caminho que se queria curto, mas que parecia longo demais para se lá chegar. Parei numa escada dos CTT onde o abrigo aos pingos da chuva se fazia sentir num alvoroço de pessoas, que ao Sábado de manhã governam a vida que se viverá durante a semana. A praça, o pão, os essenciais que deverão adocicar os dias com conforto, e que só quem tem se esquece ser um dos mais importantes. Abriguei-me ali uns segundos e vi um homem sentado no chão, com barba grande, casaco comprido, chapéu alto e um olhar morto. Ao lado dele um pacote de vinho tinto de marca branca, como que a querer dizer-nos que a vida está cheia de incongruências, mesmo quando grita muito alto. O queixo do homem tremia de frio, as mãos estavam sujas e gretadas, a pele emanava um cheiro forte e incómodo, era grande, mas quase ninguém o via. A senhora perfeita e elegante, que segurava com a sua mão delicada o sobretudo beije perto do pescoço, não o viu. A velhinha que empurrava o carrinho do supermercado, apressada e encurvada, não o viu. O jovem que olhava para dentro do telefone, como se naquele dispositivo morasse um mundo, não o viu. O senhor que parou a levantar dinheiro, de gabardina cinzenta de bom corte, e postura cordial, não o viu. Ninguém o via, ou ninguém parecia ver, até que passa um homem de fato completo e passo muito acelerado. Levava por certo um destino marcado, enquanto na mão segurava com força o saco de papel com um jornal da nossa sociedade, num ondular muito certo, de acordo com o abanar da mão. Chegou-se um pouco ao abrigo da intempérie, e tropeçou no senhor de olhos mortos sentado no chão. Estou quase certa de que o viu, posso assegurar-vos, dado que vociferou um impropério pouco digno para um porte altivo, sacudiu os pés e seguiu o seu nobre caminho. O homem, movendo um só braço, deu um gole no vinho e continuou a olhar em frente. 

sábado, 18 de janeiro de 2020

quedas

Não há maior rasteira do que a que a vida nos passa, discreta, sem que estejamos preparados para ela. Não avisa, não dá sinais, não nos dá tempo para devagar arranjarmos a pose, cuidarmos o passo, elevarmos o queixo, arrumarmos o casaco. De um segundo para o outro atraiçoa-nos a esperança do que já se foi há muito tempo, do que já morreu afogado num mar de tubarões, do que se enterrou há muitos anos junto com lágrimas e memórias. Ia eu a andar naturalmente, num dia sem registo, num quotidiano sem relevo, num lugar sem história. Ainda me voltei para trás várias vezes. Ainda apurei o nariz traiçoeiro, ainda procurei com os olhos cansados, ainda insisti no instinto vadio não fosse a vida desafiar-me e o malandreco estar certo. Não estava, não poderia estar, é a lei da natureza. Nesse instante compreendi o que tantas pessoas me relatam de olhos rasos e de rosto fechado. Sem por lá passar ninguém sabe o que é a ilusão do regresso do que já perdemos para sempre. É como se de repente o tampo recuasse, a história ganhasse forma, o corpo se agarrasse de novo ao conhecido. E a mente, parva como só ela, acredita cegamente no que naquele instante acontece, só até cair desamparada no aqui e no agora. 
Nunca me conformarei com a nossa fraca condição de sobreviventes. 

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