sábado, 18 de janeiro de 2020

quedas

Não há maior rasteira do que a que a vida nos passa, discreta, sem que estejamos preparados para ela. Não avisa, não dá sinais, não nos dá tempo para devagar arranjarmos a pose, cuidarmos o passo, elevarmos o queixo, arrumarmos o casaco. De um segundo para o outro atraiçoa-nos a esperança do que já se foi há muito tempo, do que já morreu afogado num mar de tubarões, do que se enterrou há muitos anos junto com lágrimas e memórias. Ia eu a andar naturalmente, num dia sem registo, num quotidiano sem relevo, num lugar sem história. Ainda me voltei para trás várias vezes. Ainda apurei o nariz traiçoeiro, ainda procurei com os olhos cansados, ainda insisti no instinto vadio não fosse a vida desafiar-me e o malandreco estar certo. Não estava, não poderia estar, é a lei da natureza. Nesse instante compreendi o que tantas pessoas me relatam de olhos rasos e de rosto fechado. Sem por lá passar ninguém sabe o que é a ilusão do regresso do que já perdemos para sempre. É como se de repente o tampo recuasse, a história ganhasse forma, o corpo se agarrasse de novo ao conhecido. E a mente, parva como só ela, acredita cegamente no que naquele instante acontece, só até cair desamparada no aqui e no agora. 
Nunca me conformarei com a nossa fraca condição de sobreviventes. 

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