quarta-feira, 26 de outubro de 2016

horas de lazer

Descobri há pouco tempo que há efeitos curativos idênticos aos do chocolate no filme o Sexo e a Cidade. Apanhei-o por acaso numa tarde de Domingo, nem sei se em directo se em gravação, mas a verdade é que naquele exacto momento valeu-me muito mais do que qualquer obra de arte cinematográfica digna de Óscar da academia, de actores de renome, de histórias de elevado enredo, qualidade, preceito e sabedoria, não existiria Woody Allen que o batesse no desafio. A futilidade é qualquer coisa de valor inquestionável quando acordo com o corpo cheio de espinhos. Sou pessoa para o ver e o rever, observar cada pormenor de cada acessório, de todos os relacionamentos falhados e conseguidos, de todos os cabelos encaracolados, de todos os vestidos e de todos os sapatos, malas ou laços, calças ou colares. Sou senhora para dizer para mim mesma que um dia vou gastar uma fortuna nuns Manolo, que um ano destes construo um closet no qual serei muito feliz, e que haverá um Inverno frio no qual conseguirei vestir um blazer masculino aos quadrados com uma saia lápis às flores, e umas botas de salto muito alto. Contas bem feitas, e visto até ao fim, acho que o que me encanta é a possibilidade de ver uma noiva com quarenta anos de idade e linda de morrer, com um pássaro morto na cabeça, cheinho de plumas azuis. A parte do abandono no altar não conta, salto sempre, dramas da vida real não são chamados para as horas mortas, dignas do maior lazer. 

Já arrisco qualquer coisa com os lenços. Já roubei em tempos casacos ao meu pai. Já me adornei com colares de pérolas e botas Doctor Martens, exactamente ao mesmo tempo. Nunca me casei com um Vivienne Westwood, mas quem sabe um dia encontro um na feira da ladra, trago-o para casa, ajeito-o ao meu corpo e visto-o, numa manhã de Domingo. Jamais mataria um pássaro para colocar na cabeça, mas era pessoa para arriscar um travessão antigo a segurar-me o cabelo por detrás da orelha. Não é que eu goste particularmente de me ver, mas há gestos insistentes de alguém, que merecem respeito. Talvez nasçam sempre de uma tentativa, sempre infrutífera, de me domar a rebeldia (dos caracóis). 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Lá em cima está o tiroliroliro, cá em baixo está o tiroliroló

Não acredito em castigos divinos. Não concebo caminhos dados à priori, nem emendas à posteriori, sou uma pessoa capaz de duvidar das horas marcadas, dos destinos traçados, de tudo quanto me remeta para uma premonição exagerada, soa-me a impossível, eleva-me à incredulidade, deixa-me sempre no limbo do inexplicável. Mas sou terrena o suficiente para acreditar que usualmente o mal gera o mal, e o bem gera o bem. Acredito piamente no poder da acção como criadora de outras acções. Sou totalmente subjugada ao rigor da retribuição e à força da sensatez, tanto quanto à consequência da malvadez, da supremacia e do desrespeito. Não conheço outros caminhos para além destes, pelo que considero que o que existir em paralelo serão ironias do destino, uma simples excepção a confirmar a regra. Tudo o resto é a harmonia do mundo, a cantar na direcção certa:

Lá em cima está o tiroliroliro, cá em baixo está o tiroliroló, 
Lá em cima está o tiroliroliro, cá em baixo está o tiroliroló, 
Juntaram-se os dois à esquina, a tocar a concertina, a dançar o solídó,
Juntaram-se os dois à esquina, a tocar a concertina, a dançar o solídó,

(Cantar com ritmo e acompanhado por gestos, de preferência ao espelho, e até estarem a rir de vós próprios. Reconhecer a  humildade da existência dá saúde e faz crescer, muito muito.) 

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

modas

Já morri de susto inúmeras vezes. O malvado alcança-me sempre à traição, espera-me numa curva da estrada, numa porta fechada, num caminho vazio, numa sala cheia de gente. Acontece sempre exactamente a mesma coisa. Olha para mim sem eu estar à espera, eu sustenho a respiração, viro-me devagar, encolho-me, finjo que desapareço, tremo por dentro, mais abanão, menos sacudidela, e começa sempre pelo coração, o músculo mais fraco do meu corpo. O pobre mirra sempre num segundo. Sinto-o a encolher dentro da minha carne, a mirrar como se morresse de fome, a retorcer -se devagarinho, deve ser para que o sinta desde o quilo até ao grama, peso que ostenta, grandioso, no final da morte. Ainda outro dia tentei fintar-lhe o caminho. Armei-me de Eu e respirei muito fundo, levei o ar às entranhas e fiz-lhe peito, nariz, queixo, tudo erguido em direcção aos céus, mais rija do que um pão de muitos dias. De nada me valeu, morri tal e qual, mas com a brilhante diferença de ninguém ter percebido. À medida que andava devagar senti ainda mais fortemente o rasgar da glória, o corpo a ficar, os batimentos a parar, ao mesmo tempo que eu caminhava altiva, pelo corredor. A meio do caminho encontrei alguém que não percebeu que eu tinha acabado de morrer de susto. Fiquei muito feliz, já posso morrer de susto sem que ninguém perceba que por momentos não pertenço a este mundo. Seria incómodo tanto choro a toda a hora. Um gasto de lenços, muitos olhos negros, dias de faltas por nojo, e a vida, definitivamente,  não está para modas. É muito melhor morrer sem ninguém ver. Seja de susto, de medo, de ódio ou de amor. 

domingo, 9 de outubro de 2016

figos doces

Rosalina, se fosse viva, faria hoje centro e dez anos. Não percebo muito bem porque morreu tão cedo, deveria ter uns noventa, coisa pouca, as pessoas boas deveriam viver até ao infinito. Tinha uma pele engelhada com um cheiro doce. Vestia de preto e prata, com manga e meia, fizesse chuva, fizesse sol, fizesse neve, ardesse-lhe a vida, a paciência, o ciúme da vizinha do lado, sempre a piscar o olho a Francisco, um velhote de boina erudita. Havia uma figueira no quintal que servia para ela se esconder enquanto espreitava a conquista dele. E que servia para eu subir enquanto os figos não desciam ao meu alcance, nunca tive paciência para esperar sentada. Um dia caí dela abaixo. Coloquei um pé em falso, escorreguei pelos troncos, fiquei presa numas folhas que me ampararam a queda, mas esfolei um pouco o joelho, exactamente ao mesmo tempo que Rosalina esfolou todo o coração. O coração dela era bondoso. Rezava por toda a gente, cozinhava para todos os filhos, lavava a roupa de todos os homens e mulheres da família, no rio gelado, numa pedra dura. Os corações bondosos deveriam ser poupados. Os joelhos teimosos, nem tanto. Os primeiros são o mérito da existência, os segundos a pressa do desassossego. 

(Os figos querem-se doces, os amores querem-se verdadeiros. Os maridos de boina são perigosos. As mulheres que amam vivem de amor, mesmo quando o coração sangra.)

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