domingo, 9 de outubro de 2016

figos doces

Rosalina, se fosse viva, faria hoje centro e dez anos. Não percebo muito bem porque morreu tão cedo, deveria ter uns noventa, coisa pouca, as pessoas boas deveriam viver até ao infinito. Tinha uma pele engelhada com um cheiro doce. Vestia de preto e prata, com manga e meia, fizesse chuva, fizesse sol, fizesse neve, ardesse-lhe a vida, a paciência, o ciúme da vizinha do lado, sempre a piscar o olho a Francisco, um velhote de boina erudita. Havia uma figueira no quintal que servia para ela se esconder enquanto espreitava a conquista dele. E que servia para eu subir enquanto os figos não desciam ao meu alcance, nunca tive paciência para esperar sentada. Um dia caí dela abaixo. Coloquei um pé em falso, escorreguei pelos troncos, fiquei presa numas folhas que me ampararam a queda, mas esfolei um pouco o joelho, exactamente ao mesmo tempo que Rosalina esfolou todo o coração. O coração dela era bondoso. Rezava por toda a gente, cozinhava para todos os filhos, lavava a roupa de todos os homens e mulheres da família, no rio gelado, numa pedra dura. Os corações bondosos deveriam ser poupados. Os joelhos teimosos, nem tanto. Os primeiros são o mérito da existência, os segundos a pressa do desassossego. 

(Os figos querem-se doces, os amores querem-se verdadeiros. Os maridos de boina são perigosos. As mulheres que amam vivem de amor, mesmo quando o coração sangra.)

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