quinta-feira, 11 de maio de 2017

Guronsan

Está patente na sociedade actual a franqueza aberta do sentimento. Neste paradigma quase devemos a obrigação da honestidade extrema, e sendo assim sentimos-nos no direito de dizer o que pensamos, como se fosse uma regra de conduta que subjuga os humanos que se cruzem uns com os outros, no dia a dia. Sou absolutamente conta esta realidade desde sempre, e à medida que o tempo passa chego a considerá-la como um crime que deveria ser punido por uma lei legislada e devidamente registada, na Constituição da República Portuguesa. O meu pensamento é meu e pertence-me, e não, eu não posso nem devo, dizer tudo quanto penso. Porque muitas vezes penso várias coisas sobre uma mesma pessoa, exactamente a mesmo tempo, totalmente contraditórias, entre o abonatório e o menos bom. Porque seja quem for que está do outro lado, próximo ou distante, parente ou confidente, a obrigação de ouvir os meus esgares opinativos é nenhuma. Porque por dentro tenho o direito de chamar nomes a quem eu entender, como por exemplo acontece quando espero na fila do talho que a D. Maria compre as salsichas, escolha os bifes da vazia, encomende um coelho cortadinho ao jeitinho para guisar, e um entrecosto fatiado a direito, mesmo pronto para ir para o forno. E claro, no último minuto de direito de antena costuma lembrar-se ainda do chouriço e do queijo fresco, da marmelada caseira e de uns ovinhos de codorniz, que fazem sempre falta lá em casa. Mas a D. Maria não tem rigorosamente nada a ver com isso, é só o que eu penso sobre ela, não é ela. Porque há dias em que acordo ligeiramente mais feminina do que o habitual, e um lápis colocado direito pode fazer-me tanta espécie como um lápis colocado torto, como um lápis colocado no chão, como um lápis roído na ponta por uns dentes ansiosos, tudo porque naquele dia, a confusão vem de dentro de mim e não do exterior. E como isto é a mais pura das verdades, como na essência das coisas o que nós pensamos é nosso e não pertence ao mundo, vem das nossas conclusões, das nossas considerações, dos nossos azeites e dos nossos azedumes, e como felizmente temos o direito de pensar até à exaustão do sentir, da loucura, do ridículo ou da maldade, a instituição da máxima de todos dizermos o que pensamos, está profundamente errada. Nós não devemos nem podemos dizer tudo o que pensamos, sob pena de enfartar os outros de material indigesto, sob o desígnio da frontalidade absoluta. É preciso ter cuidadinho: eu já penso tanto impropério, já mastigo tanta má língua, já engulo tanta impertinência externa, tenho lá agora ainda digerir os impropérios dos outros, mascarados de boas intenções, daquelas que moram algures lá para o inferno. Só se for a Guronsan.

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