Não sei ao certo se me viveste ou se me imaginaste. Nunca descobri se faço parte da tua vida ou dos teus sonhos, que uma qualquer tempestade externa um dia pudesse acordar. Confesso que nunca me preparei muito a sério para a desconstrução do que seria o nosso amor. Muni-me, também eu, de um livro de capa dura, muitas páginas, uma espécie de mil e uma noites impossíveis de terminar, nem no mundo real, nem nos contos das fadas, nem na ideação do teu corpo. Talvez por isso me tenhas apanhado desprevenida, incauta, entregue à sorte de um despertar clandestino. A culpa foi minha, foi inteiramente minha. Nestas histórias de encantar o permitido é lê-las com muita atenção, monitorizar os pontos, as vírgulas, os parágrafos, as páginas, não saltar letras nem fingir que não se percebe uma entoação. Não se pode descansar dele, é para ler um bocadinho de cada vez, dia após dia, nem que na folha em questão esteja escrito um qualquer conto que nos pique e que faça sangue, porque o sangue que corre é sinal de vida, enquanto o sangue que pára, será sempre sinal de morte. Nesse livro as lágrimas deveriam ser secas sem cair, morrerem no caminho entre o rosto e o papel. As folhas das flores deveriam perfumar sem partir, e a leitura deveria ser marcada com uma delicada fita de cetim, sem dobrar folhas de história que possam ficar vincadas para todo o sempre. Para os ingénuos desprevenidos, estes são uns livros perigosos, muito além do entendimento, muito mais velozes do que a velocidade do meu coração, parvo, pequeno, que bate ingénuo no meu corpo já triste. Não sei ao certo se me viveste ou se me imaginaste, repito. Nunca descobri se faço parte da tua vida ou dos teus sonhos, que uma qualquer tempestade externa um dia pudesse acordar, relembro. Talvez por isso quando adormeço e sei que dormes, enrolo-me com cuidado nos meus sonhos, não vão eles tocar os teus e haver então um encontro. Neles coloco o livro imaculado do conto das fadas, mesmo ao lado da cabeceira da minha cama, imediatamente antes do copo de água que serve para me refrescar neste verão tardio, um cansaço. O verão cansa-me o corpo, já sabem. A minha sorte é que os contos de fadas, me devolvem sempre à realidade.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
domingo, 22 de outubro de 2017
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
terra molhada
Os livros ensinaram-me a teorizar os sentimentos como quem matematiza o impossível. Explicaram-me que na mente humana existem doenças e faculdades, desejos e vontades, disseram-me que a empatia terapêutica é a melhor arma contra o terrorismo da solidão, logo a seguir ao amor de quem gosta mesmo muito de nós. Aprendi tudo sem grande dificuldade. Decorei compêndios enormes, recito-os de uma lado para o inverso, canto de cor mnemónicas que me auxiliam a memória, não vá dar-se o caso da dita me atraiçoar na hora das provas finais. Mas o pior, o grave, a mais complexa dificuldade de todas, é a inexistência de quem me tenha ensinado a fixar alguém que olha de frente para a morte, todos os dias que lhe restam de vida. Alguém que sabe com uma exactidão lúcida do que padece, que conhece, muito melhor do que eu conheço o DSM, os sintomas do fim. Alguém que conta pelos dedos de uma mão os meses nos quais vai poder continuar a respirar todos os dias, quem sabe até ao Natal, quem sabe até ao ano bom. E então o que me acontece é que eu olho para estas pessoas muito devagarinho, como se o tempo tivesse parado num lugar onde a vida não acaba nunca, e onde os minutos podem ser vividos com a calma quente da eternidade. Olho com um sentir de esperança vã, que me guarda muito mais a mim do que a ela, porque se eu não fizer assim desfaço o corpo num mar de impotência que me colheria a voz, os gestos, os sorrisos e a direcção. Olho com uma dificuldade de quem bate muitas vezes de frente com a dor, aquela que engole pessoas num trago maior, rápida, certeira, capaz de vingar até o mais forte de todos os fortes de todos os fortes. Nestes dias, em que a minha profissão me pesa mais do que os anos, os quilos, os sonhos ou os desejos, encolho-me um bocadinho e regresso a casa mais veloz do que um pássaro que se esconde da caça. Abro a porta, espreito, e se a fechar com jeito deixo tudo no vão da escada. Tudo menos o que insiste em vir comigo. Que chega a ser muito, que chega a ser demais.
Felizmente chove. O cheiro da terra molhada sempre me deu colo, desde o dia em que eu nasci.
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