quarta-feira, 18 de outubro de 2017

terra molhada

Os livros ensinaram-me a teorizar os sentimentos como quem matematiza o impossível. Explicaram-me que na mente humana existem doenças e faculdades, desejos e vontades, disseram-me que a empatia terapêutica é a melhor arma contra o terrorismo da solidão, logo a seguir ao amor de quem gosta mesmo muito de nós. Aprendi tudo sem grande dificuldade. Decorei compêndios enormes, recito-os de uma lado para o inverso, canto de cor mnemónicas que me auxiliam a memória, não vá dar-se o caso da dita me atraiçoar na hora das provas finais. Mas o pior, o grave, a mais complexa dificuldade de todas, é a inexistência de quem me tenha ensinado a fixar alguém que olha de frente para a morte, todos os dias que lhe restam de vida. Alguém que sabe com uma exactidão lúcida do que padece, que conhece, muito melhor do que eu conheço o DSM, os sintomas do fim. Alguém que conta pelos dedos de uma mão os meses nos quais vai poder continuar a respirar todos os dias, quem sabe até ao Natal, quem sabe até ao ano bom. E então o que  me acontece é que eu olho para estas pessoas muito devagarinho, como se o tempo tivesse parado num lugar onde a vida não acaba nunca, e onde os minutos podem ser vividos com a calma quente da eternidade. Olho com um sentir de esperança vã, que me guarda muito mais a mim do que a ela, porque se eu não fizer assim desfaço o corpo num mar de impotência que me colheria a voz, os gestos, os sorrisos e a direcção. Olho com uma dificuldade de quem bate muitas vezes de frente com a dor, aquela que engole pessoas num trago maior, rápida, certeira, capaz de vingar até o mais forte de todos os fortes de todos os fortes. Nestes dias, em que a minha profissão me pesa mais do que os anos, os quilos, os sonhos ou os desejos, encolho-me um bocadinho e regresso a casa mais veloz do que um pássaro que se esconde da caça. Abro a porta, espreito, e se a fechar com jeito deixo tudo no vão da escada. Tudo menos o que insiste em vir comigo. Que chega a ser muito, que chega a ser demais.

Felizmente chove. O cheiro da terra molhada sempre me deu colo, desde o dia em que eu nasci.

2 comentários:

  1. Desde Julho que tenho visitado o seu Blog na esperança de ler os seus textos. Julgo, pelo que tenho lido, que é psicóloga, profissão que respeito e admiro. Faço terapia. Leio os seus textos sempre com a atenção que merecem e procuro sempre extrair alguma mensagem. Obrigada por ter voltado a escrever. Isabel Q

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Isabel, obrigada pelas suas palavras. Nem sempre consigo o tempo e a calma que preciso para o fazer. Um beijinho.
      ( Sim, sou psicóloga :)

      Eliminar

Deixar um sorriso...


Seguidores