Acho ordinária a leviandade com que se fala na educação como a salvadora do mundo. É um embuste, a todos os que passam a acreditar que a pureza do saber eleva o Homem a um estado supremo de consciência, mais sereno, mais capaz, mais compassivo, mais sábio. Esquecem-se, com descuidada irreflexão, que é no inconsciente que mora grande parte das razões da existência. E que não há matemática ou geografia que nos dê grandeza ou educação, quando na esfera emocional, nada se passa.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
terça-feira, 25 de setembro de 2018
terça-feira, 18 de setembro de 2018
persa
Amo os animais desde que nasci. Acolho-os no meu colo desde que me lembro de ser gente, ajudei gatas a parir, vi cães a morrer, chorei de dor quando a minha avó se lembrou de socar um coelho na minha frente, era eu pequena, três réis de gente. Nada mudou. Mas hoje, amplia-se cada vez mais o meu contacto com a minha consciência, e muito embora me continue a chocar o sofrimento animal, choca-me ainda mais a passividade humana, perante o do seu semelhante. E fico ainda mais indignada quando me deparo com quem o valida como veredicto, enquanto afaga a cabeça de um persa. O persa não tem a culpa, é lindo de morrer, peludo, macio, deve compensar até aos ossos o ego de quem o possui assim, sem entraves nem limites. O seu ar de dono do mundo não foi decidido por si, tem lá a culpa de ter nascido com uns maravilhosos olhos azuis, uma cabeça perfeitinha e um corpo delicado. A culpa nem será da dona, que lhe deposita na existência a sua fé na humanidade. A culpa será eventualmente da necessidade de ajuizar com plena garganta, aclarada, depois de cuspir um escarro. Se todos pensássemos mais nos nossos processos do que nos dos outros, o respeito aumentaria substancialmente. Essa história do pensar no próximo, honestamente, sempre me levou para territórios de desconfiança, de egoísmo, de vontade de emergir (ou, pior ainda, existir), como se possível fosse que o meu pensamento pudesse, por si só, ajudar quem quer que fosse. O caminho afigura-se-me sempre mais dentro do que fora, e quando assim não é, poderemos até acarinhar gatinhos, dar esmola aos pedintes, participar nas corridas cor de rosa em prol de uma causa, mas na prática nada muda, nada resulta, nada avança. A não ser, claro, o nosso ego.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
avantesma
Ela estava sempre airosa, do alto dos seus dezoito, muito desenvolvidos e ligeiramente belos. Não fosse um dente amarelo que lhe estragava o sorriso, e diria que era quase perfeita, o que rápido nos leva à crença de que já na altura, se a sua boca se mantivesse fechada, muito teria a ganhar. Eu, franganita de dezasseis anos, sem formas nem graça, ficava abafada por trás dela se ele entendesse esconder-me, as inseguranças tolhiam-me os passos da adolescência, uma era da minha vida onde o mundo me pisou os calos até fazer sangue. Naquela altura toda a malta se apelidava com um qualquer epíteto, mais ou menos apropriado, que definia aos olhos que olham a personagem em questão, sem ser preciso decorar Marias e Josés, uma infinidade de nomes sem qualquer ligação prática. Não faço ideia de onde surgiu a ideia na cabeça da airosa rapariga, de dezoito e de dente amarelo, senhora do grupo, dos rapazes, e de alguma inveja das outras raparigas. Não faço ainda ideia o porquê do grupo ter acolhido aquele nome para me definir, eu, tão pequena e enfezada, quase raquítica, sem cores e sem rosáceas de sol. Mas sei que ontem, nas minhas leituras da noite, Fanny Owen atirou-me à cacetada para uma palavra que eu já nem sabia ter ouvido na minha vida. Muitas vezes, vezes sem conta, dirigida a mim como se eu fosse na realidade uma autêntica aparição, na melhor das hipóteses, deixando de lado a disformidade, claro, não me parece apropriada a uma donzela, nem quando proferida por uma tal superiora. Ainda outro dia passei por ela. Os anos maltratara-na, e hoje, em plena luz do dia, o dente amarelo é o menor dos seus defeitos. Continuava a gritar alto e bom som as suas verdades absolutas, enquanto enrolava cigarros sentada na mesa da esplanada, gesticulando como se o mundo lhe pertencesse, e os nomes, hoje substituídos por outros mais claros e ofensivos, fossem propriedade de sua senhoria. A sorte dela é que ainda ia longe deste capítulo do livro. Caso contrário, e se estivesse lembrada de tal qualificação, era bem capaz de lhe ter segredado ao ouvido na passagem, que ela se parecia muito com uma avantesma. Não porque é disforme, embora até talvez seja. Não por apresentar aparência fantasmagórica, muito embora possa tê-la. Mas porque esta pessoa me assusta, por variadíssimas razões. E há de factos palavras feias, que assentam que é uma beleza.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
no coração
Nem sempre consciencializo a finitude da vida, esqueço-me dela, numa defesa que o meu corpo ergue em sua salvação. Não me surpreendo porém quando a encontro, já a tratei por tu em várias estradas do meu caminho, desde as mais esperadas às mais impossíveis, perfeita na assunção de que não mandamos neste mundo. E muito menos quando comparados com a vida e a morte, as únicas grandes senhoras da existência. Fechar ciclos deixa-me porém assustada, num medo que encontro no meu depósito emocional, aquele onde sentimos tudo o que há para sentir, sem apelo nem agravo, sem modéstias ou redenções. Ainda não sei ao certo se por vezes não me apetece crer no infinito da vida eterna, aquela onde tudo se pode reencontrar, com as mesmas rugas nas mãos, os mesmos olhos adocicados, o mesmo cheiro tão próprio de cada pele (não há melhor sentido para recuperar o que é nosso, tenho para mim). Mas para meu desassossego sou da dúvida, de muito poucas certezas, e o lugar onde as respostas se me podiam afigurar como certas, representa para mim um ror de enigmas sem clareza possível, nos dias que até hoje eu conheço, uma empreitada de horas que se seguem umas nas outras, em filas indianas e históricas, sempre sem nenhuma conclusão que me leve a algum lugar para além da repetição da dúvida. Não raras vezes, procuro sinais. Ora nos mortos ora nos vivos, ora nos tristes ora nos felizes, oras nos certos ora nos errados. Perda de tempo, pura inutilidade, não há nada que se me afigure como certo ou verdadeiro, cada vez mais a realidade me contraria a lógica, com um comando doido, difícil de manobrar. A vida tem uma lei, oiço dizer. Creio nela, não me restam caminhos de sobra ao meu pobre intelecto. Mas as perguntas perseguem-me, incautas, velozes.
Por ora existem uns olhos cansados, que parecem não gostar mais deste mundo. É um ciclo que um dia termina, é a lei da vida, é sempre esta a resposta que os ignorantes usam para explicar a dor do fim. Como se possível fosse desenhar por palavras os sentimentos. Santa ignorância, franca estupidez. A única coisa que podemos descrever em código é o fácil, o óbvio, a regra, o evidente. A outra dimensão pertence a extensões esquecidas pelos dicionários do Homem, e reside apenas no seu coração (o que será isso, o coração?).
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