sexta-feira, 7 de setembro de 2018

avantesma

Ela estava sempre airosa, do alto dos seus dezoito, muito desenvolvidos e ligeiramente belos. Não fosse um dente amarelo que lhe estragava o sorriso, e diria que era quase perfeita, o que rápido nos leva à crença de que já na altura, se a sua boca se mantivesse fechada, muito teria a ganhar. Eu, franganita de dezasseis anos, sem formas nem graça, ficava abafada por trás dela se ele entendesse esconder-me, as inseguranças tolhiam-me os passos da adolescência, uma era da minha vida onde o mundo me pisou os calos até fazer sangue. Naquela altura toda a malta se apelidava com um qualquer epíteto, mais ou menos apropriado, que definia aos olhos que olham a personagem em questão, sem ser preciso decorar Marias e Josés, uma infinidade de nomes sem qualquer ligação prática. Não faço ideia de onde surgiu a ideia na cabeça da airosa rapariga, de dezoito e de dente amarelo, senhora do grupo, dos rapazes, e de alguma inveja das outras raparigas. Não faço ainda ideia o porquê do grupo ter acolhido aquele nome para me definir, eu, tão pequena e enfezada, quase raquítica, sem cores e sem rosáceas de sol. Mas sei que ontem, nas minhas leituras da noite, Fanny Owen atirou-me à cacetada para uma palavra que eu já nem sabia ter ouvido na minha vida. Muitas vezes, vezes sem conta, dirigida a mim como se eu fosse na realidade uma autêntica aparição, na melhor das hipóteses, deixando de lado a disformidade, claro, não me parece apropriada a uma donzela, nem quando proferida por uma tal superiora. Ainda outro dia passei por ela. Os anos maltratara-na, e hoje, em plena luz do dia, o dente amarelo é o menor dos seus defeitos. Continuava a gritar alto e bom som as suas verdades absolutas, enquanto enrolava cigarros sentada na mesa da esplanada, gesticulando como se o mundo lhe pertencesse, e os nomes, hoje substituídos por outros mais claros e ofensivos, fossem propriedade de sua senhoria. A sorte dela é que ainda ia longe deste capítulo do livro. Caso contrário, e se estivesse lembrada de tal qualificação, era bem capaz de lhe ter segredado ao ouvido na passagem, que ela se parecia muito com uma avantesma.  Não porque é disforme, embora até talvez seja. Não por apresentar aparência fantasmagórica, muito embora possa tê-la. Mas porque esta pessoa me assusta, por variadíssimas razões. E há de factos palavras feias, que assentam que é uma beleza. 


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