sexta-feira, 8 de março de 2019

Dia da Mulher

Inês é minha prima desde que nasceu. Brincávamos sempre sozinhas, num vão de escada de acesso a um sótão, com bonecas nuas que vestíamos com as obras de arte que Albertina costurava, tardes a fio, na bernina que hoje habita em minha casa, restaurada, polida, como que a desafiar a morte que lhe roubou a dona. Inês era uma rapariga ingénua, tal e qual eu, tal e qual as outras primas que surgiriam na família, até ao dia em que o pai, à sua frente, mata com dois tiros a sua mãe. Maria caiu no chão imóvel, para todo o sempre, e Inês, apesar de viva, caiu com ela. 
Foi nesse dia que eu soube que há pessoas que matam outras pessoas sem ser em guerras, e que a vida de quem perde assim outro alguém, muda para sempre, porque a perda vai muito além de uma mãe. Inês perdeu a mãe, perdeu o pai, perdeu uma avó feliz e umas tias serenas. Perdeu a esperança no mundo, a tal que nenhuma pessoa deve perder, muito menos aos treze, muito menos nunca. Perdeu o local onde morava, perdeu a confiança na família, perdeu muitos colos, muitos sorrisos, muitos abraços e muitas histórias. Ganhou outras, demais para lhe caberem no peito, que rebenta ao pensar no que o pai, que a devia guardar, lhe arrancou das mãos num segundo. 
Dali em diante fiquei de olhos mais abertos. Descobri que à minha volta moravam outras vítimas, menos violentas, ou talvez igualmente, sem concretizar. Moravam vítimas em casas conhecidas, em casas distantes, em histórias que eu escutava como se nada estivesse a ouvir, num fingimento que me valeu muitas verdades assustadoras. A violência de um crime para quem a lê num jornal, é de uma atrocidade tremenda. Projectamos as nossas vidas, analisamos o perfil do agressor, especulamos o motivo, choramos a infelicidade da desgraça alheia. Longe, muito longe de quem vê ao perto os olhos de quem perdeu a vida como ela era, mas continua a viver, como alguém escolheu. Muito mais longe ainda, creio eu, de quem vive todos os dias sob o medo da morte. Talvez ainda tão longe de quem vive sem ele e o descobre, inesperadamente, num dia qualquer. Não há respostas, nunca se sabe o porquê, e por isso não me revejo no discurso da igualdade, da evolução, da mudança. Enquanto não educarmos sempre pessoas, teremos atitudes animais. Enquanto focarmos as celebrações no exterior, e esquecermos o interior, caminharemos sempre para lado nenhum. Enquanto a vida da família valha tanto como um nome ofensivo, que sai da boca com espinhos na direcção de um corpo sofrido, teremos sempre desrespeito. Enquanto o valor da Mulher, continuar a ser menor, e se vista apenas de flores e vaidade, não chegaremos ao destino. E assim, longe, muito longe de ganhar batalhas merecidas, vamos morrendo, a mãos alheias, um dia uma, outro dia outra. 

- O marido da Maria matou-a com dois tiros, era a frase da minha mãe, repetida à exaustão da loucura. A minha Maria, a minha Maria, gritava ela, com as mãos na cabeça. E eu olhava, incrédula, ainda sem saber bem o que seria aquilo. Aquilo, era a morte.

4 comentários:

  1. Infelizmente a morte desta mãe condenou para sempre a possível felicidade da vida da filha, tal como as mortes que têm acontecido a uma velocidade surpreendente nos últimos tempos. Assustador, muito assustador. Obrigada pelo texto tão bom.

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    1. Assusta. Que tivesse acontecido, que continue a acontecer. Obrigada Maggie F.

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  2. A violência vive connosco e espreita em quem menos esperamos. Saber contê-la, trabalhá-la, exorcizá-la deveria há muito ser o trabalho de todos e de cada um. Em vez disso, vivemos muitas vezes numa sociedade que a coloca num pedestal, esquecendo que a lei do mais forte não é o que faz de nós seres humanos mas apenas animais.
    ~CC~

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    1. A sociedade, de forma discreta ou visível, vai compactuando...

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