quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ruído

O mundo está cheio de pessoas que buscam paz interior a custo relativamente reduzido. Há muito tempo que existem, deverá por certo constar de um cardápio socialmente bem conseguido, um guião de bem-fazer, almejado por quem ambiciona para todo o sempre, um lugar cativo no céu. Privar com os que necessitam de ajuda deve fazer parte dos requisitos de quem se encontra numa extrema direita, mas com emoções popularuchas, quem sabe, de extrema esquerda. E não se vão de modas, claro. Participam em peditórios do banco alimentar, que independentemente do destino, serve um propósito nobre. Reservam uns dias de férias para integrar projectos da igreja direccionados a população carenciada, de dinheiro e de afectos, entre outras iniciativas, que permitem em tempo definido e com fim à vista, apaziguar o corpo pecador, e dar ao espírito um síndrome de dever cumprido, obrigada e até para o ano. Não tenho certamente nada contra, permito-me a mim própria à simplicidade da observação. Do teatro dos que a estes préstimos se propõem, em nome da "solidariedade", quando comparados com o verdadeiro auxilio ao próximo, pelo próximo, e não por um lugarzinho no céu. São tão fáceis de distinguir entre os dois. Enquanto um é governado pelo medo, o outro é pela generosidade. Enquanto um se entrega à fraqueza, o outro entrega-se à nobreza. Enquanto um adensa a diferença, o outro apela à semelhança. Enquanto um caminha na direcção da solidão, o outro retrata a grandeza da evolução.

Enquanto um é barulhento, o outro é silencioso.

(...)

O universo coloca-nos à prova, todos os dias. Quando tropeçamos e batemos com o nariz na porta, quando acordamos e sentimos o peso da vida aos ombros, quando nos deitamos e rebolamos por entre os lençóis, arranhados pelo desassossego. Depois, quando menos se espera, reorganiza-se. Nesse dia o nosso corpo respira com mais lentidão, focamos o caminho e, sem pressa, aguardamos nova intempérie. Nunca nada está terminado.

( Ela sabe bem disso enquanto segura o bebé nos braços. Uns olhos majestosamente grandes, um riso fácil, um choro elevado. Todo o mundo está ali, naquele pequeno ser. Que a mata e ressuscita, todos os dias. Invariavelmente.)

sábado, 24 de agosto de 2019

Corrupção

Passeia-se lenta, sempre com um ar de quem descobre a cada passo, o caminho imediato a seguir. Não se adivinham os avanços, as decisões, e os fios que orientam o seu trajecto, parecem sempre tecidos por umas agulhar de laçada fina, inconsequentes, imprevisíveis. Ninguém lhe decifra as métricas do rosto, o tamanho do sorriso, o peso da lágrima, a profundeza das covinhas que desenha no rosto, em cada palavra que soletra, com a doçura de uma simplicidade maior. Faz-me pensar, ao quente sol do meio dia, na transparência que todos encerramos, sem darmos conta, a quem consiga observar. É certo que fotografa a criança com a delicadeza da maternidade. É um facto que esconde a tristeza com uma mestria digna de quem consegue retirar coelhos de uma caixa, ou fazer desaparecer uma carta dentro da manga de um casaco preto. É real que desafia o mundo a olhos vistos, como se nele habitassem apenas distracções que se enredam nas corridas dos dias, velozes, sem tempo para o pensamento. Esquecida, talvez, que no desenho dos seus gestos, mora o seu todo. Escorreito, sem falhas de carácter, sem histórias de mal dizer. Transmitimos tanto do que somos no quotidiano do que fazemos. Nunca uma má história cultiva uma flor, nunca uma boa pessoa se corrompe na dificuldade. 

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