sábado, 2 de novembro de 2019

os arrumadinhos

A calma e a tolerância não são conceitos dos dias de hoje, são conceitos de um outro tempo. Como aquele em que eu esperava, sem facilidades, que a hora dos desenhos animados chegasse mais cedo, distraindo o corpo a efectuar papinhas de esparguete e água, enquanto na minha imaginação nasciam histórias de encantar. 

Hoje já não se cultivam legumes ao natural. A pressa de chegar às bancadas dos supermercados faz com eles não bebam toda a água que têm de beber, não esperem que o sol lhes dê cor, não acordem com o vagar de umas semanas lentas e caprichosas, no toque aveludado oferecido pela madrugada. Hoje, dizem que felizmente, temos recursos para acelerar todos os crescimentos. Hoje, sabemos onde estão todos, a toda a hora. E monitorizamos em padrão pessoas, como quem pesa ao quilo um pacote de farinha para o pão. Já não desenvolvemos a paciência da espera, a tolerância da demora, a resistência que apenas se consegue com o treino intensivo da subida a pulso e da ocupação da mente. Hoje o súbito substitui o denso, no universo da sociedade, e consequentemente, no universo das relações humanas. Ninguém sabe o que é esperar e desesperar por uma carta, ninguém sabe o que é a demora do pensamento, ninguém escolhe a longa caminhada, porque a rapidez do imediato permite que façamos tudo de uma vez, num shot vitaminico falso e manhoso, em vez de saborearmos o que vamos fazendo a tempo de se fazer. A ilusão da satisfação não trata mais do que isso, uma mera ilusão. Idêntica ao arroz de pato que compramos em embalagens plásticas ( recicláveis), que apregoam bem alto saber ao arroz de pato da nossa avó ( sabem lá eles o sabor do arroz de pato da nossa avó). 

E é neste trajecto que vamos construindo pessoas a martelo, como o vinho sem corpo, como uma broa que não levedou. É assim que esperamos que as nossas crianças se tornem adultos de sucesso exterior e mediático, sem olharmos para dentro dos olhos delas e percebermos se lá dentro, no território das emoções, há sucesso pessoal e imensurável, como todos os sentimentos. Porque o que conta parece ser o que se mede, em escalas com bitolas iguais, numa sociedade onde a norma engoliu, há muito, a magia da individualidade. E depois, depois chegamos ao que eu considero o limite da desumanização e da credulidade humana. Criamos este mundo, impulsionados pela ímpar sabedoria da evolução, mas fugimos a passos largos das consequências, nefastas, da inversão de prioridades. Criticamos a impulsividade das criancinhas, argumentamos que não estão aptas a pensar o suficiente porque se distraem nas novas tecnologias, gritamos que o valor das relações se deteriorou, que não sabemos dizer não, e que a agressividade roubou a tolerância e o respeito. Quando na verdade, o que acontece, é uma corrida contra o tempo e uma vitória da norma, sem tempo e sem individualidade. O resto, são consequências.

Daqui à frustração vai um passo. Um passo que se mede, já que apreciamos a medida, em índices de infelicidade e vazio. Hoje vivemos mitigados com comprimidos que sossegam criancinhas, e que aumentam a capacidade de adultos ansiosos, as tolerarem. Todas a aprender igual, depressa e de forma rigorosa. Os topos estão nos quadros de excelência, e recebem aplausos. E ninguém percebe o porquê, de tantas vezes, se desorganizarem anos depois. Eram tão arrumadinhos. Também ninguém parece perceber que ao longo da vida muitos se desregulem, quando no universo relacional não fluí tudo como se espera, e a agrura da vida ensina da pior maneira que há para ensinar: com a crueza dela própria. Em vez de vencermos, saímos vencidos, incapazes de alojar os sofrimentos, de secar as lágrimas e confiar na placenta, imaginária, do nosso próprio caminho. O abismo seria menor se olhássemos cada vez mais para o que conseguimos evoluir enquanto pessoas. Sem medidas e sem comparações.

2 comentários:

  1. Hoje é assim, tudo é, antes de ser. O pior é que quem não quiser alinhar, deixa de ter lugar e, então, vive-se como se fossemos empurrados para o abismo todos os dias. E a frustração deles junta-se à nossa tristeza. Civilização, dizem...
    Boa tarde

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