Na minha porta alguém ladra a um cão. O cão recua assustado, quem ladra é ele, gente deveria falar, gesticular, é a loucura, só pode ser a puta da loucura. Entro e sinto o cheiro a um peso difícil de suportar, com todo o respeito que eu tenho pelos feixes que a minha bisavó acartava na cabeça, sob um corpo leve como uma pena e uma mente mais forte do que os muros de um castelo. Eu, muitos anos depois, com uma abertura supostamente maior e um suporte, eventualmente, mais consistente, deveria ser capaz de sentir a leveza da brisa que atravessa a estrada no exacto momento em que eu a cruzo. Penso nisso, volto a sair e abro as narinas intencionalmente. Esqueço a naturalidade do respirar e concentro-me, direcciono-me para o local exacto de onde corre o ar, apuro o nariz e espero. Fecho os olhos, claro, os sentidos são minuciosos, precisam de convergência. Ainda assim não consegui deixar de escutar o ruído, a concentração no essencial por vezes exige-nos tanto que quase nos deixamos sufocar com desperdícios. Entretanto o homem parou de ladrar e eu entrei. A cortina abre-se e entra um sol frio de Outono, o meu preferido de todos os tempos e de todos os lugares do mundo. Consigo ver ao longe o animal que foge do homem que ladrou, e finalmente respiro mais sossegada. Só não descobri ainda se é mais fácil sentir ou fluir.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
terça-feira, 4 de novembro de 2014
desatinos
Come devagar e com sabor. Queixa-se pouco, quase nada. Dizem que está consciente, mas as falhas no discurso dizem-me que tem dias. Concluo, abusivamente, que existirão alturas afortunadas e outras muito menos do que isso. Não consigo passar isenta, mas não tenho muito para lhe dar a não ser meia dúzia de palavras, um sorriso amarelo, uma palmada nas costas. Pouca coisa, quase nada, talvez melhor do que o silêncio. Procuro sinais, sou invasiva com os olhos. Perscruto medos, examino anseios, sondo manifestações de transtornos como quem espera alcançar o pretexto para que a revolta se declare, e o choro brote. Normalmente não chego lá, mas fico sempre desatinada. A ignorância no destino, acreditem, é talvez uma das nossas maiores bênçãos. Não há nada mais incómodo do que uma morte anunciada.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
tom
Tenho com frequência uns inoportunos achaques de grandeza. Neles menosprezo quem se incumbe de preocupações medianas, como a cor do verniz que vai bem com a roupa, que vai bem com a bolsa, que vai bem com o calçado. Também olho com desdém quem se demora no bâton, levanto o dedo a quem se dá à placidez da existência, renego os que vivem no meio da guerra, sem acto ou imposição. Bem vistas as coisas e é inveja, é inveja o que sinto, da serenidade dos tranquilos na imensidão do desassossego. É que eu mesma aprecio a conjugação de cores, aquelas, as que me escapam, quando a paciência me morreu antes de eu saber do tom. Dai em diante não há critério, há calhar. O lenço que calhou no pescoço, o sapato que calhou no pé, a mala que calhou na mão. Verniz nem vê-lo, mas acreditem que gosto muito. Dá-me um ar cuidado que eu própria desconheço.
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