quinta-feira, 15 de setembro de 2016

encontros

Que o caminho se faz caminhando todos sabemos, mas antes de lá chegarmos andamos sempre meio perdidos. Recordo-me de ser a garota que entrava para a faculdade, mais ou menos com o ar das que hoje acompanho, cheinha de sonhos maravilhosos, desarrumados e empoleirados em raminhos verdinhos que minavam a minha cabeça de folhinhas e minhoquinhas, todas idas ao engano. Nessa altura a psicologia era uma profissão limpa, onde um livrinho de notas e um lápis pequenino faziam parte do trabalho, à luz de um candeeiro de pé alto, com um peixinho num aquário mesmo ali ao lado, e com uma planta de plástico que parecia muito natural. O tapete era de pêlo fofo, o cadeirão de um conforto que só visto, a janela daria para o Tejo numa Lisboa ao entardecer, por onde entraria o som de gaivotas que dançariam a música dos Deuses. As minhas coleguinhas enfermeiras, tal como eu, também percebiam muito disto tudo. Umas batinhas brancas, uns velhinhos simpáticos e bem-falantes para curar. Uns joelhitos esfolados, umas vacinas nos bracinhos de uns bebés, na loucura uns pontos na testa de algum adolescente desgovernado. As fardas também tinham o seu quê de interessante. Branquinhas e curtinhas, limpinhas e justinhas, adornadas pelo clássico casaco azul escuro, meio aberto no decote, meio preso na calça roliça, a deixar a anca a passear. Enganos, descobri entretanto, traições, é o que demais a vida tem para nos dar. Muito depressa nos consciencializamos que não é nada disto que trata a nobreza de cada uma das profissões, e que o que têm de bonito temos de ser nós a construir, cá dentro, onde mora o coração. Não há cá cadeirões e cenários de delirar até aos anjos, há salinhas de consultório onde se espremem borbulhas do inconsciente, onde se chora a baba e o ranho, onde se cheira a merda e a morte, a dor e a pavor. Não há cá livrinhos, há empatias e olhos nos olhos, taco a taco com a purga da alma, tu cá tu lá com os medos e os horrores. As batinhas brancas das enfermeiras também não são nem limpas nem justas. São largas para permitir ao corpo acudir depressa, quando o sangue insiste em jorrar. Porque muitas vezes não há só picas e pontinhos na testa, há golpes fundos, há corpos dilacerados, mal-cheirosos, sujos, pestilentos, doentes e amarelos, na iminência de deixarem de guardar um ser vivo, porque para além do viver e do sofrer, também há o morrer. Bem vistas as coisas ninguém vai à partida preparado para isto tudo, eu pelo menos não vim. Nunca imaginei no meio da limpeza dos livros científicos, a crueza do que me comeria a seguir, mais depressa do que um gigantesco gole de café quente, que me queimou a garganta até ao estômago, passando devagarinho pelo esófago. Que o caminho se faz caminhando já todos sabemos, mas antes de lá chegarmos andamos sempre meio perdidos, a julgar que estamos encontrados. 

Mas na verdade só depois, na espuma de todos dias, nos perdemos realmente. Aí, plenamente conscientes de que certamente, nunca mais nos encontraremos. 

6 comentários:

  1. Olá CF, como sempre gostei muito do que escreveu.
    Sim, o caminho faz-se caminhando e no início é adornado de ilusão. Contudo, apesar da vicissitudes quotidianas, nem sempre a ilusão se transforma em total desilusão.
    Sou enfermeira, e se voltasse atrás, escolhia novamente esta profissão.

    Um abraço

    Maria

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    Respostas
    1. Maria, também seria sempre psicóloga... :) Mas que vim enganada, vim. Pelo menos eu vim, e muito...

      Um beijinho para si

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  2. Costumo dizer que quando somos tenrinhas, achamos que estamos certa e os outros errados. Depois começamos a achar que não é possível estarem tantos errados e pomos em causa se estamos certas .. e chegamos a uma idade em que chegamos à conclusão de que não há certo nem errado ... só se espera encontrar alguém que pense como nós ... Gostei de passar por aqui ... Um beijinho

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