quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

saúde e lágrimas

Escuto sempre com muita atenção o que me dizem os olhos dos meus antepassados. Concentro-me em meia dúzia de almas espelhadas pelo tempo, impressas em papel velho e a preto e branco, debruado a um bordado muito irregular (como a vida). Há sempre alguns que me olham directamente como a Mona Lisa nos olha nas paredes do Louvre, apontados à nossa menina do olho, que não é mais nem menos do que tudo o que trazemos dentro e carregamos no corpo que nos acolhe a seiva. Gosto muito dos olhos de Israel, são sempre ligeiramente abertos, verdes cor de azeitona, enquadrados num perfil que se dizia ruim, mas do qual eu não conheço a ruindade. Aprecio os olhos de Albertina, a senhora dona de si, que tarde percebeu que não era dona de coisa alguma, nem do seu nariz, nem da sua vida, nem muito menos da sua morte ( ninguém é dono senão do nada). Dizia-se dela a luta, conheci-lhe bem melhor o abandono. Carmina, a mais bela de todos, a mais branca, a mais delicada, tinha uns olhos pequenos e amendoados, e essa olha-me todos os dias, sem falhar um, no papelinho em homenagem à vida que guardo desde o dia da sua morte. As festas trazem-mos sempre, muito embora já não haja Natal há mesa com todos,  nem lugar ou espaço para se falar deles, as defesas da maioria não permite que nos encontremos frente a frente. Todos apreciam mais a fuga no Bolo Rei, no frito mal amassado ( ninguém amassa como Albertina), no cabrito mal assado ( ninguém assa como Carmina), no vinho mal escolhido ( ninguém escolhe vinho como Israel). Não raras vezes encontro ainda os olhos de Rosalina, mais pretos do que o breu. Neles aprendi a cozinhar em lenha, a cozer bucho de cabra, a entrançar cabelos, a matar coelhos com um murro no lombo e a roubar ovos às galinhas, para o pão de ló. Nas festas sinto que me pertencem só a mim, num egoísmo que se fez ao hábito de guardar cá dentro o que poucos querem ouvir. Hoje, e para encabeçar a época, deparei-me com todos eles em casa próxima, sem esperar, uma espécie de encontro combinado pelo divino, sem comida, sem mesa, mas com olhos a olhar para mim. Estavam a sorrir-me, emoldurados em álbuns muito velhinhos, descolorados, e mais uma vez pude chorá-los sem que ninguém me visse chorar. Não tenho vergonha das lágrimas que verto, são um sal que me pertence e que solto sempre que me apetecer, regulam-me a alma, lavam-me o rosto, devolvem-me o chão. Mas não gosto de embaraçar o mundo, que teima em viver longe de tudo quanto dói. Como se a morte fosse um espinho que mata. 

Neste novo ano desejo-vos a serenidade de viverem com tudo o que a vida vos tem trazido. E que chorem e riam à medida do que vos for preciso. Contrariamente ao que possam julgar, podemos ser mais felizes se chorarmos mais ( Frase de autoria identificada, de uma amiga muito querida).

E saúde a todos, também.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

demónios

O mundo teima em despersonalizar os seus habitantes, e eu zango-me cada vez mais com esta insistência. Ser pessoa não tem de ser numa norma explicita e impessoal, onde a guerra com o interior se assume como um batalha que vencemos, ou então morremos por dentro. E morrer por dentro todos os dias um bocadinho deve ser uma morte dura de se morrer. Morre-se devagarinho na escola, quando precisamos de aprender devagar e nos ensinam depressa. Morre-se devagarinho nos intervalos, quando nos monitorizam os passos e nos escolhem pela roupa que vestimos, e morremos muito mais se somos feios, se temos mau gosto ou pouco dinheiro, se não mudamos de mochila muitas vezes, ou se o casaco tem um buraco no cotovelo. Morremos devagarinho quando nos obrigam a ler o que não gostamos e nos levam para longe das histórias de amor que se escondem debaixo do travesseiro, mas sob as quais as aulas não nos permitem discorrer. Morremos devagarinho quando nos impõem ideais, quando nos vendem religiões, quando nos cortam sonhos, acrescentam metas, ou limitam o coração. Morremos devagarinho quando temos de esconder muitas dores por vergonha de as chorar, quando engolimos zangas que picam na garganta e no estômago, quando somos obrigados a vender a alma a quem insiste que a vida não é só nossa, com base em alicerces estúpidos e francamente menores. Morremos devagarinho quando nos sujeitam a guerras que não são nossas, mas que nos agarram pelos colarinhos da camisa e nos apertam o pescoço, com mais força do que uma forca de corda grossa e apertada. Gritar de uma vez pode ser que assuste quem insiste nesta glória. Pode ser que esta gente morra de medo, que cale a voz, que caia para o lado e deixe o sangue dos outros escorrer por onde lhe apetecer. Esforço-me tanto para que gritem, que por vezes dou o meu grito a quem o queira. Nessas alturas fico sempre muito rouca, sobro pouco para mim. Dormir devolve-se quase sempre a voz, mas no dia seguinte acordo invariavelmente um bocadinho mais cansada do mundo. A despersonalização é o demónio do século. Começa no grito do parto e acaba no fecho do caixão.

(Despersonalize-se tudo, despersonalize-se o mar e o céu, despersonalize-se a água e o ar, despersonalize-se a justiça e a lei, despersonalize-se a nuvem que passa, despersonalize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto despersonalizar, despersonalizem-se os estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas despersonalizadas, mediante concurso nacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, despersonalize-se também a puta que os pariu a todos."

Com o maior respeito do mundo pelo grande José Saramago, que em bons tempos escreveu sobre a privatização, in Cadernos de Lanzarote, Diário III, Pág. 148)


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

do saber de coisa nenhuma

Decidi mudar de método quando o anterior não me chegava. Fui percebendo devagarinho que as teorias que abordam o comportamento são todas elas limitativas, o que uma explica a outra esquece, o que numa se encaixa, na outra fica de parte, o que numa se trabalha, na outra nem sequer se torna alvo de consideração. Debrucei-me sobre todas, ao longo dos anos. Desde as mais comportamentais às mais construtivistas, passando pelas sistémicas, as psicanalíticas, as relacionais. Fui espreitando de perto cada uma delas, aprofundando as que me faziam mais sentido, salpicando a minha acção com o que cada uma me dava de mais produtivo, mas só mesmo quando cheguei a um modelo mais integrativo encontrei respostas satisfatórias. Porém descobri que aprender aos quarenta, não é igual a aprender aos vinte, e só depois de muito ruminar o assunto descobri o porquê. Aos vinte tudo se aloja e se entranha na voz, o cérebro desenrola à velocidade de um falcão apressado, as palavras escoam no ritmo certo, nem lento nem rápido, numa harmonia que assusta pela fluidez da perfeição. Faltavam-me anos de prática, mas a minha mestria cobria isso tudo, com muitíssima arte e uma desenvoltura impossível de conter. Hoje, possuo o que o terreno e os anos nos dão. Tenho milhares de horas de execução prática, centenas de histórias ouvidas, compêndios inteiros de vidas que me passaram pelas mãos e pelo corpo, numa interacção regular e proactiva; possuo milhões de defesas desmontadas, muitas tarefas relacionais executadas, zangas expressas em muitos murros, e tristezas choradas em toneladas de lencinhos de papel mentolados, os meus preferidos de todos os lenços. Mas na verdade sinto cada vez mais que sei muito pouco, e que começar de novo numa vocação mais global, é um objectivo demasiado para mim. Sinto-me hoje, todos os dias, francamente mediana. Sinto-me, à medida que descubro mais, cada vez mais aprendiz. Sei menos, muito menos, do que quando saí dos bancos da faculdade, profundamente capacitada e direccionada para o que a teoria sabiamente me deu. A teoria é francamente boa para nos fazer crer que sabemos. A prática, quando exercida com vontade e coração, devolve-nos a única realidade possível: não saberemos nunca rigorosamente nada. 

sábado, 10 de dezembro de 2016

anel

Há dias em que canso os passos que apresso avenida afora, a caminho do destino. Não há palavras que saiam a direito, voz que me possibilite o entendimento, gesto que favoreça o encontro, e sossego que me alimente o espírito. Penso sempre muito devagar quando isto acontece, e temo ser aqui o cerne da questão. Fosse eu de enxurrada, como Rosalinda, e não haveria decisão que me morresse nas mãos. Fosse eu conformada, como Baptista, e não haveria acontecimento que me suscitasse preocupação. Fosse eu egoísta, como Alice, e não haveria peso que me encorpasse a consciência. Assim, fraca e em cuidados, como Carmina, vou ganhando umas rugas nos cantos dos olhos, uns tremelicos nas pontas dos dedos, uma dor no estômago por fraqueza, e uma soltura por nervos acesos, regulados intensamente por pernas inquietas, fracas, demasiados fracas para me conter. Nestes dias não há mesinhas que me dêem sono à noite. Não existem cafés que me acordem ao dia, sacudidelas que me espevitem no arranque, afagos que me apaguem no descanso. À noite fico mais integrada, o escuro ajuda-me a esconder de mim os meus medos mais antigos, e nunca os tento procurar. Fecho os olhos muito tempo, enrolo-me no escuro do quarto, encaracolo-me em posição de feto e imagino-os fechadinhos a sete chaves no cofre das jóias, dentro de uma caixinha com um laço perfumado, almofadados a veludo bordeaux, quentinhos e adormecidos por muitos e muitos anos. Há dias em que na manhã seguinte, nem ouso ir buscar um anel.

(Fica ainda usualmente a faltar-me o relógio, que dorme sempre ao lado do depósito das jóias. Sem anéis, vou andando. Atrasada é que não aprecio, sendo este o maior custo da minha defesa.)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

frágil

A fragilidade é um termo um tanto ou quanto imutável. Acaba por alcançar-me sempre que pode, não espera que se faça tarde, não bate à porta antes de entrar depressa, não espera um convite para se sentar à mesa comigo enquanto degusto um prato de qualquer coisa quente. Lembro-me muito bem de lhe ter tomado a consciência. De a ter sentido a levar-me de assalto, a alojar-se com comodidades de rainha, a enraizar-se com umas raízes daquelas que não morrem com o tempo, com o vento ou com a morte. Lembro-me muito bem de nesse dia ter deixado de ser sossegada. De ter acordado para sempre, de ter ganho ganas de levar à frente tudo quanto se colocasse no meu caminho. Mas era frágil. Pedi tanto ao meu Deus que se despachasse depressa, e que fizesse crescer o meu filho com muita saúde, para que eu pudesse sentir um qualquer descanso outra vez. Uma vontade egoísta, que felizmente não pude cumprir, porque a natureza, a única dona disto tudo, acalma-se sempre na hora certa, e permitiu-me saborear o nascimento, segurar o crescimento, amparar a vida. Sempre frágil, mas sempre ali. Hoje olho para ele e vejo que cresceu um bocadinho. Dou-lhe muito abaixo do pescoço, em altura e em grandeza, mas na realidade sinto-me mais frágil do que nunca. Não há cá sentir de dever cumprido, não há o sossego precisado, não há, nem de perto nem de longe, a robustez que eu esperava do tempo. Hoje precisava que ele, o tempo, voltasse para trás um bocadinho. Precisava de embalar o meu bebé no meu colo, com ele inteiro nos meus braços. Precisava de o ver dormir com autorização moral de lhe vigiar o sono, de ver se respirava, de o cheirar muitas vezes seguidas em cada minuto do tempo. A fragilidade é um conceito estranho e controverso desde que se é mãe de um filho. Todas as escolhas são as maiores do mundo, todos os medos são os mais gigantes, todos os crescimentos são um passo enorme para a vossa vitória, e um outro para a nossa derrota. E a cada dia que passa, sinto uma fragilidade maior. 

(O que passamos mora somente na minha e na nossa memória. Aí pertences-me para sempre, mas mesmo assim não sei se me chega.)


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