sábado, 29 de dezembro de 2018

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Não me cabe a mim desiludir-me com o mundo, o mundo está igual ao que sempre foi. Não me cabe desiludir-me com as pessoas, com as guerras, a política, com os hábitos, os costumes e os dogmas que nos prendem a uma raiz velha e cansada, mas mais pesada do que um rochedo. Não me cabe ainda desejar o que quer que seja para o novo ano, nada do que ambiciono, além do que a mim possa ser direccionado, depende dos meus desígnios, vontades ou ambições. Posto isto e muito mais que aqui não escrevo, sinto-me leve de medos, que surgem maiores quando os projectos não podem desviar o curso ideado. A assunção da imprevisibilidade, talvez seja uma das grandezas que nos pode trazer a paz. Ou o que mais se pode parecer com ela.


quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

a juíza

Se a opinião pública fosse juíza do mundo, o mundo andaria certinho e direitinho, montado nuns carris que seguiriam velozes numa linha recta, conforme a sabedoria popular. Maria fugiu de casa um dia destes. Não foi comprar coisa nenhuma, mas foi pagar um serviço, e levou uma volta que nunca mais ninguém a viu, todos acham que fugiu. Muito já se disse, e as vozes sabem sempre do que falam. Primeiro, era uma pobre de Cristo. Escapou a medo, não aguentou uma vida de sacrifício, deve ter pedido abrigo a alguma alma que a acolheu, caridosa, por tê-la protegido de tão violento marido, capaz de matar, ofender, bater e maltratar. Andou uns dias que cá na terra não havia pessoa que não lhe chorasse a pobre da sorte, não lhe gabasse a coragem, não lhe louvasse a nobreza de deixar a casa, a vida rica, e ficasse apenas com a roupa do corpo, sem nada que fizesse lembrar os luxos de sempre. Grande senhora. Mas foi preciso apenas um Natal, altura de todas as salvações, da família, do perdão, do arrependimento e da melancolia. Nesse dia, ele entristeceu de sozinho, mostrou alguma fragilidade, exagerou, afirma, mas nunca lhe bateu, insiste, sempre cuidou dela, foram apenas umas discussões. Está magro, enfezado, com ar de infeliz, e a nobre  justiça mudou. Neste preciso momento, quinze dias após o desaparecimento, oito dias após o primeiro veredicto, um dia após a consciência do arrependimento, temos uma nova vilã e uma nova vítima. Quem sabe se arranjou outro e forjou uma farsa para fugir. Quem sabe se simplesmente se fartou e resolveu abandonar o lar. Quem sabe se não foi nada, e de coisa nenhuma surgiu um acto de loucura. Amanhã, quem sabe, talvez ela volte, e ele a acolha e lhe perdoe este incauto abandono. 

Amanhã, quem sabe, talvez ela volte, e ele a acolha e lhe perdoe este incauto abandono. Amanhã, quem sabe, talvez ela volte e ele a mate, como castigo. Hoje e sempre, ninguém sabe de nada a não ser o que julga ver. E o que se vê, pode ser nada, quase sempre é quase nada. Já o que se fala e se ajuíza é tudo, nem que mude com o tempo, com o vento, com o Natal, ou com um visível arrependimento. A magia das festas e de uma lágrima, é infinita.

domingo, 9 de dezembro de 2018

beleza

Visualizei, sob a orientação do professor de filosofia do meu filho, o filme " Cidade de Deus", base de reflexão para um trabalho de grupo. Uma lacuna na minha humilde sabedoria não o ter visto antes, uma falha gravíssima, uma ausência de realidade. O filme traça a vida numa favela do Rio de Janeiro, e é um dos confrontos com a vida mais duro que eu já assisti em cinema. Haverá outros, creio, mas este transporta-nos ao que o ser humano pode fazer em situações adversas e violentas, uma ausência de limites tão assustadora, quanto real. - Muito violento, apregoam algumas mães, a respeito dos filhos, homens quase feitos, de quinze ou dezasseis anos. - Muito real, riposto eu, uma estalada na cara de meninos que julgam que a vida é uma escola quase perfeita, onde os telemóveis topo de gama saltam da mochila, mais rápido do que os ténis de marca dão uns passos no chão. Hoje, de olhos mais abertos, talvez aqueles jovens já pensem que o lugar onde se nasce pode ser uma favela, onde a facilidade se confunde com o céu, de tão longe. Olhar de frente o sofrimento tem idade tardia, marcada pelo calendário dos ocidentais, que julgam que é assim que se faz alguém crescer. Uma pena, que o mundo não aproveite para tabelar por uma bitola idêntica, quando tudo começa a doer. É mais uma questão de jogo de escondidas, de estradas acidentadas nos primeiros caminhos, de lugares onde se pode, ou não, nascer e morrer. Pela história afora, as vidas perdem-se como quem lança um berlinde no chão. Por estas cabeças cruas, vamos no apelo do esclarecimento. Fechar olhos a quem já cresceu o suficiente para saber onde está, é meio caminho andado para a ignorância, mais violenta do que qualquer filme.

O mundo não é um lugar bonito. O excesso de cores com que o pintamos de belo é uma maquilhagem perigosa, que leva ao engano. Um engano desastroso, danoso, mortal. Ensinar o desafio de contrariá-lo parece-me o caminho mais difícil, mais tortuoso, mais longo, mas eventualmente o único que nos poderá levar ao que é realmente belo.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

arte

Sempre achei um abuso as interpretações literárias que se fazem às obras dos grandes mestres, e que se entregam, de bandeja, como se o analista de cada livro ou poema soubesse exactamente o que o escritor ou poeta, quereria dizer. O mesmo se estende à pintura, à escultura, ou a qualquer outra obra de arte. Uma expressão emocional em estado puro, é impura. Revela a essência que por vezes nem o próprio consegue encontrar. Na exteriorização assume o exercício de pertencer também a quem a vê, de uma forma diferente em cada pessoa. Tudo quanto a resuma, reduz.

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