domingo, 27 de janeiro de 2019

censura

Dizem os entendidos que já nada é como antes. Que os meninos não irão conhecer o mundo como nós o conhecemos, e que a ausência de trocas sadias irá prejudicar o seu desenvolvimento, em prol de um crescimento virtual cada vez maior. Será que não nos cabe a nós, pais, controlar ligeiramente este fenómeno? 
Quando segui para a faculdade não havia telemóvel. Havia uma cabine de moedas, da qual eu ligava para casa, três vezes por semana. Ninguém sabia se eu comia, se eu bebia, se eu dormia, se eu estudei ou se eu vadiei. Se eu desaparecesse por umas horas não era grave, pois o desaparecimento não era detectado, eventualmente seria imaginado. E se eu não estivesse online horas a fio não era o desespero, porque esse estado, tal como hoje o conhecemos, não era possível. 
Em pequena, mais anos de distância ainda, eu saia em bando, de bicicleta, mal a escola terminava, com mais meia dúzia iguais a mim. Guardados por cães, gatos e cabras no pasto. Brincávamos nas árvores, nas fazendas, nas estradas, e nos baloiços construídos com uma corda e uma tábua, no tronco de uma árvore qualquer. Ninguém fazia questão de nos guardar em casa, certos do que estávamos a fazer, cientes da segurança transmitida por um dispositivo e um sofá, que não permitiriam que nos acontecesse nada. Estaríamos ao abrigo do sol, da chuva, da maldade do mundo e das nossas travessuras. Nada era assim, quando éramos livres. E é por isso que quando hoje em dia oiço falar de liberdade, o considero um conceito controverso e delicado. Somos livres num mundo que nos monitoriza os passos, como quem nos escreve a história. Livres num lugar onde se não atendermos um telefone na primeira hora, todos julgam que morremos, que fugimos, que estamos ausentes demais, ou que somos levianos, para mal do circuito normal da humanidade padronizada. 
Luto contra isto todos os dias. Não me interessa saber a vida do meu filho ao segundo, interessa-me que ele a viva. E se esse hábito já não me sai natural, se o impulso do perguntar se está bem surge mais vezes do que eu gostaria, faço um esforço imenso para que reduza, muitas vezes, todos os dias. Mais do que eu saber se ele está bem, é ele estar. E para ele estar, necessita de estar, por ele, para ele, sem a carga pronta da censura ao segundo. 

Não me parece que haja margem para crescer com limites difíceis de quebrar, comandados ao segundo por um dispositivo remoto. Houve tempos em que se pensou que esta permanente ligação era benéfica, hoje já começamos a perceber os riscos, mas não sei se saberemos o caminho do regresso.
Alguém deixou um carreirinho de pão? 

domingo, 20 de janeiro de 2019

e agora?

Seremos felizes quando conseguirmos olhar o mundo sem esperar a compreensão, é ela que nos desassossega e nos impede de sorver a simplicidade. Seremos ignorantes se nos entregarmos à preguiça da satisfação do óbvio, é na busca desmedida que evoluímos. E agora?

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

doença

Nasci com pouco. A casa não tinha água canalizada, vinha de um poço, e era aquecida no fogão. O meu pai era militar por vocação, numa época em que a obrigação ainda falava mais alto do que a família. Ou o amor, ou a dor. Cresci a acreditar que a vida era feita de pão cozido no forno comido com planta, de bolachas com manteiga e café forte, de milagres que a Santíssima Trindade, padroeira lá da terra, fazia sempre que alguém estava doente, e o meu avô saia de seringa em punho para dar uma injecção, enquanto a minha avó rezava de joelhos em frente à santa, fosse por quem fosse. Quando chegou a televisão vinha a preto e branco, com dois canais, e só às seis da tarde existiam desenhos animados. E ao Domingo de manhã, antes da missa, onde eu lia os salmos às escondidas da minha família, pouco católica por sinal. O meu pai tinha um mini amarelo que nos levava à praia da Nazaré sempre que era verão, e à serra ver a neve, sempre que era inverno. A capital servia apenas para ir ao médico, e muito de longe em longe, ao jardim zoológico, e sempre que isso acontecia havia o limite do que se podia gastar. Se comêssemos uma pizza, não comíamos pipocas, se comêssemos pipocas, não havia gelados para ninguém. Se fôssemos às compras, ou havia a saia, ou havia as calças, ou havia apenas um par de meias, se fossem de lã, subidas, caras e quentes. Não fui menos feliz por isto, acho que com isto construí um orgulho gigante em quem me ajudou a crescer no seio do amor e da dificuldade. Não sinto que os dias de hoje sejam piores por haver mais acessos, mais evolução, mais qualidade de vida. Mas temo que o amor verdadeiro não consiga brotar de igual forma quando tudo parece fluir sem adversidades. Explico-me mal, talvez, não é o amor que não surge, ele eventualmente surgirá. Mas vem disfarçado de cores que ofuscam a capacidade de sentir genuinamente. Uma doença do século que turva emoções, prioridades, pensamentos, família, abraços e vinculações. 

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

orgulho

O orgulho pertence às categorias legítimas e ilegítimas da existência. Quando nasce a pulso, juntamente com a obra crescente, assume-se como uma vitória de quem luta, de quem avança, de quem se esforça, de quem desespera até ao último segundo de tempo, para vencer uma maratona. Quando por outro lado nasce no vazio de coisa nenhuma, não passa de um ataque sombrio de vaidade, sem eira nem beira, sem sustento ou devoção. Enquanto o primeiro é um direito, o segundo é um defeito.

sábado, 12 de janeiro de 2019

histórias

A mesma pessoa olha-me sempre com os mesmos olhos, os olhos de quem quer esquecer o passado. Constrói um castelo que lhe parece suficiente para erguer uma vida inteira de agora em diante, e de esconder uma enorme, de agora para trás. Fala-me efusivamente das janelas que se abrem para o sol, das camas que se estreitam para o infinito dos olhos, dos recantos que aconchegam ao sabor do lume, do jardim imenso onde as redes se baloiçam numa perfeição qualquer. Não sei ao certo o número de andares, não consigo perceber. Nem o peso do oiro que carrega ao pescoço, a cor das paredes que limitam o lar, ou o cheiro do incenso que se queima na sala. Olha-me demasiadas vezes com a mesma questão, já estou cansada: - conseguirei eu prosseguir, e morar assim tão ausente? Não respondo, nunca lhe digo nada, o passado de cada um é um recanto escondido, em lugares inconstantes. Tanto pesam uma pedra, como pesam uma pena. De modo que nada falo e somente sinto: que o castelo seja imponente e capaz: de matar a dor de uma pedrada, e a saudade de um sorriso perdido.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

equilibrio

Ganho esperança no mundo quando encontro pessoas que me confiam a sua realidade, sem quase saberem quem sou. Nelas espelho uma crença antiga, arcaica, crescida por entre uns ramos de oliveira, um sol nascente e um sol poente, uma terra onde a palavra dada era a palavra honrada, onde o respeito governava, e onde os caminhos tortos das estradas levavam invariavelmente ao conforto do previsível. Perco-a quando encontro muitas outras capazes de vender a alma ao diabo por um par de vulgaridades. Sei com certezas absolutas quais delas se sobrepõem às outras, quais vencem e quais perdem, quais dormem mais sossegadas, quais são muitas e quais são raras. Deixo com cada um a conclusão que lhe aprouver, mediante a observação activa da humanidade. As certezas absolutas são como os corações, cada um tem as suas, que batem a uma velocidade compassada, individual, reflexiva, a um ritmo sinusal ou mais patológico. 

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