Dizem os entendidos que já nada é como antes. Que os meninos não irão conhecer o mundo como nós o conhecemos, e que a ausência de trocas sadias irá prejudicar o seu desenvolvimento, em prol de um crescimento virtual cada vez maior. Será que não nos cabe a nós, pais, controlar ligeiramente este fenómeno?
Quando segui para a faculdade não havia telemóvel. Havia uma cabine de moedas, da qual eu ligava para casa, três vezes por semana. Ninguém sabia se eu comia, se eu bebia, se eu dormia, se eu estudei ou se eu vadiei. Se eu desaparecesse por umas horas não era grave, pois o desaparecimento não era detectado, eventualmente seria imaginado. E se eu não estivesse online horas a fio não era o desespero, porque esse estado, tal como hoje o conhecemos, não era possível.
Em pequena, mais anos de distância ainda, eu saia em bando, de bicicleta, mal a escola terminava, com mais meia dúzia iguais a mim. Guardados por cães, gatos e cabras no pasto. Brincávamos nas árvores, nas fazendas, nas estradas, e nos baloiços construídos com uma corda e uma tábua, no tronco de uma árvore qualquer. Ninguém fazia questão de nos guardar em casa, certos do que estávamos a fazer, cientes da segurança transmitida por um dispositivo e um sofá, que não permitiriam que nos acontecesse nada. Estaríamos ao abrigo do sol, da chuva, da maldade do mundo e das nossas travessuras. Nada era assim, quando éramos livres. E é por isso que quando hoje em dia oiço falar de liberdade, o considero um conceito controverso e delicado. Somos livres num mundo que nos monitoriza os passos, como quem nos escreve a história. Livres num lugar onde se não atendermos um telefone na primeira hora, todos julgam que morremos, que fugimos, que estamos ausentes demais, ou que somos levianos, para mal do circuito normal da humanidade padronizada.
Luto contra isto todos os dias. Não me interessa saber a vida do meu filho ao segundo, interessa-me que ele a viva. E se esse hábito já não me sai natural, se o impulso do perguntar se está bem surge mais vezes do que eu gostaria, faço um esforço imenso para que reduza, muitas vezes, todos os dias. Mais do que eu saber se ele está bem, é ele estar. E para ele estar, necessita de estar, por ele, para ele, sem a carga pronta da censura ao segundo.
Não me parece que haja margem para crescer com limites difíceis de quebrar, comandados ao segundo por um dispositivo remoto. Houve tempos em que se pensou que esta permanente ligação era benéfica, hoje já começamos a perceber os riscos, mas não sei se saberemos o caminho do regresso.
Alguém deixou um carreirinho de pão?
Alguém deixou um carreirinho de pão?