quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

doença

Nasci com pouco. A casa não tinha água canalizada, vinha de um poço, e era aquecida no fogão. O meu pai era militar por vocação, numa época em que a obrigação ainda falava mais alto do que a família. Ou o amor, ou a dor. Cresci a acreditar que a vida era feita de pão cozido no forno comido com planta, de bolachas com manteiga e café forte, de milagres que a Santíssima Trindade, padroeira lá da terra, fazia sempre que alguém estava doente, e o meu avô saia de seringa em punho para dar uma injecção, enquanto a minha avó rezava de joelhos em frente à santa, fosse por quem fosse. Quando chegou a televisão vinha a preto e branco, com dois canais, e só às seis da tarde existiam desenhos animados. E ao Domingo de manhã, antes da missa, onde eu lia os salmos às escondidas da minha família, pouco católica por sinal. O meu pai tinha um mini amarelo que nos levava à praia da Nazaré sempre que era verão, e à serra ver a neve, sempre que era inverno. A capital servia apenas para ir ao médico, e muito de longe em longe, ao jardim zoológico, e sempre que isso acontecia havia o limite do que se podia gastar. Se comêssemos uma pizza, não comíamos pipocas, se comêssemos pipocas, não havia gelados para ninguém. Se fôssemos às compras, ou havia a saia, ou havia as calças, ou havia apenas um par de meias, se fossem de lã, subidas, caras e quentes. Não fui menos feliz por isto, acho que com isto construí um orgulho gigante em quem me ajudou a crescer no seio do amor e da dificuldade. Não sinto que os dias de hoje sejam piores por haver mais acessos, mais evolução, mais qualidade de vida. Mas temo que o amor verdadeiro não consiga brotar de igual forma quando tudo parece fluir sem adversidades. Explico-me mal, talvez, não é o amor que não surge, ele eventualmente surgirá. Mas vem disfarçado de cores que ofuscam a capacidade de sentir genuinamente. Uma doença do século que turva emoções, prioridades, pensamentos, família, abraços e vinculações. 

3 comentários:

  1. Compreendo mas não tenho essa certeza. Tentei dar à minha filha o que não tive pois tive pouco, mas não acho que ela não dê valor ao que lhe dei, talvez num certo momento da adolescência, mas agora faz contas, sabe o que é uma conta de supermercado, o que é pagar a mais num restaurante. etc. Às vezes é ela própria que nos diz que não é preciso lhe dar isto ou aquilo. Acho que muita coisa passa pelo diálogo que vamos construindo com eles sobre as questões financeiras, fazendo-os também participar de certas decisões.
    ~CC~

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    1. Concordo consigo, claro. Generalizei, mas com a devida cautela, tudo se pode ensinar... :)

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