Talvez não haja emoção mais visível do que o medo. Por muito que a tentem esconder escapa por entre os gestos, na ânsia do sossego que insiste em resistir. Nota-se algum esforço teatral para que a normalidade se faça transparecer, quebrada pelo indómito " temos de estar longe, temos de ficar em casa", que surge na validação da ausência do cumprimento habitual. " É a vida", dizemos todos, obedientes e impotentes perante a força maior do desconhecido, numa racionalização que não pretende mais do que acalmar o nosso interior. A alegria por sua vez é a emoção da vida, expande-se de outra forma, é natural, mais ou menos subtil. A zanga pode viver submersa em nós por uma vida, deixando marcas no corpo, mas conseguindo ser mestra em matéria de contenção e recato. A tristeza, ai a tristeza. A tristeza vive na poesia, nos dias e nas noites, nas memórias, nas luas, nas recordações e nas melancolias, e consegue ser só nossa como nenhuma outra pode ser. É o medo, sim, é o medo. O medo é a maior de todas as verdades, não há olhar que o esconda, não há passo que não o denuncie.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
domingo, 22 de março de 2020
sábado, 14 de março de 2020
(...)
"É a crise", dizia sempre Albertina, referindo-se à sua vida complicada e difícil, ou não fosse Israel um senhor altivo, imponente, e, por escolha, seu marido. Hoje se fosse viva faria muitos anos, num dia abençoado pelo sol e amaldiçoado por uma crise diferente das que ela conhecia. Não sei se maior, não sei se pior. Resta comemorar em memórias, em cheiros que não esmorecem, em lugares que se encontram desenhados em nós, perfeitos como só o colo de uma avó pode ser. Nunca mais se comeram pastéis de bacalhau, feijão com azeite e coscorões. O segredo era pouco mais do que nenhum, deveria ser mais da cozinha, do lugar, dos bancos da mesa e das mãos que embalavam tudo com uma mestria maior: a do amor aos netos. Os avós são logo a seguir aos pais, o início de tudo. Terminam primeiro, vão para o céu, como que para nos ensinar que dentro da nossa existência, o que nos segura é o que não se vê.
domingo, 8 de março de 2020
amola-tesouras
Estava eu a costurar quando me lembrei dela. Por vezes lembramos os nossos mortos pela falta que nos faz o que nos ensinaram com o saber da vida, nos tempos em que ainda estamos longe de perceber o que uma agulha e uma linha podem recuperar. A minha tesoura, perdida na caixinha das linhas cor-de-laranja, não corta. Morde o tecido, morde-me as mãos, mas não separa o que tem de separar com o rigor de um corte a direito, como eu via a minha avó ordenar na ganga estendida sobre a mesa do sótão. Necessita de ser amolada, mas da última vez que ouvi um amola-tesouras, não a tinha comigo. O amola-tesouras passeava-se há muito tempo pelo Ribatejo nos dias de chuva. Tinha uma música que ecoava à distância, dependendo do vento, e ela costumava sair para a rua com a sua tesoura de costura comprida e sempre impecável. Hoje, ao deparar-me com a incompetência deste meu utensílio, lembrei-me que dentro da Bernina antiga, que mora nos quartos do fundo da minha casa, encontram-se alguns objectos da sua verdadeira e única dona. Fui lá num salto, abri a gaveta, encontrei carrinhos de linhas, botões, fita métrica e bobines suplentes, mas nada da tesoura, que deve ter seguido em herança para um outro alguém. A minha memória por vezes atraiçoa-me, estava quase certa de a ter visto lá, ao mesmo tempo que, no mesmo nível de certeza, sentia que estava longe...
Hoje, por uma prudência de devida cautela, foi cancelada a inauguração da minha escola primária, que reabria ao público muitos anos depois, pelas mãos de um benemérito. Eu era uma das convidadas para contar aos meninos de agora como era a escola do antigamente, onde um pequeno armário de madeira guardava a fabulosa biblioteca, onde um aquecedor a gás aquecia as mãos geladas de quem calcorreava alguns quilómetros para lá chegar, onde o recreio era constituído por um pequeno pátio, sem telheiro, onde meninos e meninas jogavam ao peão, saltavam ao elástico e subiam a árvore que timidamente se erguia torta, ao lado da casa de banho, obviamente fora do edifício. Eles não iriam acreditar que seria possível viver assim, num mundo sem telemóveis, onde o momento do dia era a hora em que se bebia o leite com chocolate e se recebia a caixa grande que guardava os 24 pacotes, com um desenho para pintar que valia uma vida. Ou o momento em que chegava o senhor que vendia batata doce assada, numa mota vagarosa e ruidosa. Ou ainda, o momento em que se levava a tesoura para amolar, e escutávamos o chilrear do aparelho a roçar o metal, à distância perigosa do muito perto.
Hoje os sons não são iguais, o que desenvolve uma vida diferente, dentro de nós. Já não se costura como antigamente, e já quase ninguém sabe que o amola-tesouras vinha com a chuva, porque também arranjava chapéus.
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