domingo, 8 de março de 2020

amola-tesouras

Estava eu a costurar quando me lembrei dela. Por vezes lembramos os nossos mortos pela falta que nos faz o que nos ensinaram com o saber da vida, nos tempos em que ainda estamos longe de perceber o que uma agulha e uma linha podem recuperar. A minha tesoura, perdida na caixinha das linhas cor-de-laranja, não corta. Morde  o tecido, morde-me as mãos, mas não separa o que tem de separar com o rigor de um corte a direito, como eu via a minha avó ordenar na ganga estendida sobre a mesa do sótão. Necessita de ser amolada, mas da última vez que ouvi um amola-tesouras, não a tinha comigo. O amola-tesouras passeava-se há muito tempo pelo Ribatejo nos dias de chuva. Tinha uma música que ecoava à distância, dependendo do vento, e ela costumava sair para a rua com a sua tesoura de costura comprida e sempre impecável. Hoje, ao deparar-me com a incompetência deste meu utensílio, lembrei-me que dentro da Bernina antiga, que mora nos quartos do fundo da minha casa, encontram-se alguns objectos da sua verdadeira e única dona. Fui lá num salto, abri a gaveta, encontrei carrinhos de linhas, botões, fita métrica e bobines suplentes, mas nada da tesoura, que deve ter seguido em herança para um outro alguém. A minha memória por vezes atraiçoa-me, estava quase certa de a ter visto lá, ao mesmo tempo que, no mesmo nível de certeza, sentia que estava longe... 

Hoje, por uma prudência de devida cautela, foi cancelada a inauguração da minha escola primária, que reabria ao público muitos anos depois, pelas mãos de um benemérito. Eu era uma das convidadas para contar aos meninos de agora como era a escola do antigamente, onde um pequeno armário de madeira guardava a fabulosa biblioteca, onde um aquecedor a gás aquecia as mãos geladas de quem calcorreava alguns quilómetros para lá chegar, onde o recreio era constituído por um pequeno pátio, sem telheiro, onde meninos e meninas jogavam ao peão, saltavam ao elástico e subiam a árvore que timidamente se erguia torta, ao lado da casa de banho, obviamente fora do edifício. Eles não iriam acreditar que seria possível viver assim, num mundo sem telemóveis, onde o momento do dia era a hora em que se bebia o leite com chocolate e se recebia a caixa grande que guardava os 24 pacotes, com um desenho para pintar que valia uma vida. Ou o momento em que chegava o senhor que vendia batata doce assada, numa mota vagarosa e ruidosa. Ou ainda, o momento em que se levava a tesoura para amolar, e escutávamos o chilrear do aparelho a roçar o metal, à distância perigosa do muito perto.

Hoje os sons não são iguais, o que desenvolve uma vida diferente, dentro de nós. Já não se costura como antigamente, e já quase ninguém sabe que o amola-tesouras vinha com a chuva, porque também arranjava chapéus.


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