domingo, 8 de janeiro de 2017

indomável

Não me lembro de há quantos anos subo aquela escada íngreme que me leva às ondas. Em pequena contava os degraus de pedra molhada, tentava não escorregar pelas rochas, fixava os olhos no horizonte e pensava, com a liberdade da criancice, que para além do que eu via havia um mundo encantado. Hoje faço tudo ao contrário. Fixo o horizonte em primeira instância. Sei que os contos são dos livros e que por muito cuidado que eu tenha posso escorregar, pelo que evito embrulhar-me no xaile para o frio e concentro-me no corrimão, que não me deixa os olhos libertos para me proteger da maresia que chega sempre sem se avisar. Fez-me lembrar quando uns óculos do meu primo nadaram pelo mar adentro, desprevenidos, engolidos de um trago sem arroto, sem volta, sem redenção. O choro da avó foi tal, que o alívio da mãe ao saber que o filho estava vivo e intacto, tapou a despesa das lentes graduadas, caríssimas, trazidas há dias com fama de inquebráveis, como se a vida se medisse apenas pelo impacto no chão. A sorte sentiu-se na hora, e o almoço foi agradável, o menino estava ali. Aleluia. Voltando à rocha. Lá em cima há um santo que a guarda, nunca percebi bem que santos guardam o quê, ou a qual deles devo pedir alguma bênção. Conheço alguns, houve tempos em que rezei a outros tantos, já os venerei nos locais divinos, arrumados em altares floridos espalhados pelo mundo, nos pontos cardeais da religião católica. Falo-lhes sempre como se me ouvissem, e por vezes esqueço-me que não creio em Deus nenhum, quanto mais num santo. Fico confusa nestas alturas. Por muito que encontre um santo em cada local, por muito que os procure, a fé sempre me nasceu mortiça, fraca, prematura, já na beira de uma qualquer morte. Mas respeito-os a todos com muita devoção, e o de hoje deu-me uma fala muito especial. Estava poisado num local da minha história, acompanhou mortes e vidas, nascimentos e casamentos, baptizados e funerais. Ouviu sempre com muita atenção o que lhe disse sem me duvidar, não é coisa para vivos, e isto deu-lhe um enorme voto de fé. Ficou parado e não me segurou ao colo, não se mexeu do lugar, ficou fixo no altar erguido em tempos muito idos, guardado a flores brancas e madeira velha, puro, imaculado. Senti-o tão meu, que custou-me virar-lhe as costas, demorei uns minutos. Foi lento e bonito.

O silêncio fala comigo desde sempre, e ergo-o cada vez mais ao lugar divino da minha fé. Simbolicamente refectido numa imagem de um santo, ganha um significado na minha organização mental. As respostas ganham corpo, numa bruma, cravejado de espadas e com uma capa vermelho sangue. Um corpo barulhento, batido pelo vento, bravo, forte, indomável. E eu ali.


4 comentários:

  1. belíssimo, CF, este texto.
    o silêncio pode ser tanta coisa...

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    Respostas
    1. Obrigada Laura... Pode, pode ser muito. Pode ser tudo quanto cabe entre a felicidade extrema e a maior dor...

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  2. Um santo assim é um amigo para toda a vida, não importa a que religião pertence, fê-lo seu.
    ~CC~

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