domingo, 22 de janeiro de 2017

óculos

Comprei uns óculos de ver ao perto muito jeitosos. São adequados ao formato da minha cara, ajustam-se na perfeição, apetece-me usá-los como acessório de estilo em qualquer lugar, nunca mais os larguei. Ainda por cima desde que os tenho comecei a ver tudo com uma claridade assustadora. Comecei a decifrar os enigmas, a ler as entrelinhas, a compreender as histórias, a detectar as cores, as letras, os humores e as alegrias, os medos e as fantasias, de uma forma muito mais organizada, agora muito além de uns míseros olhos, já cansados, meio turvos, um tanto ou quanto encolhidos, por vezes esquecidos que servem para olhar. Ainda outro dia, já noite dentro, descobri mais um diagnóstico assustador com a ajuda das novas lentes. O DSM contínua a ser um aliado, mas andava esquecida de o olhar a sério, andava sem tempo e sem paciência, limitada ao trivial da sanidade, a encaixar tudo no superficial, no ligeiro, na rotina, na vida, como se não soubesse que a mente por vezes fica doente. Ao olhá-lo com a atenção de uma nova vista, ao verificar a checlist, ao quantificar a desordem devidamente, consegui atribuir um nome a algo que me atormentava fazia muito tempo. Não me soou nada bem, mas deu-me sentido ao sucedido, são as divinas faces da moeda, na identificação do problema. Por vezes, admito, tenho falhas de profissão. Não raramente engreno numa correria habitual e esqueço que o patológico surge onde menos se espera, onde a nódoa nunca caiu, onde a face se assume como saudável e o corpo acompanha de perto com muito orgulho, tudo mais ou menos certo, sem lascas visíveis, sem fendas profundas, com algum brilho, muito polimento, uma certa eficiência intelectual, a domadora de quase todas as feras. Mas é quando o ar frio me bate na cara e me corta que eu abro os olhos bem abertos, efectuo um ajuste de graduação, não tiro os óculos e vejo no tamanho tão real, o que parecia ser de uma outra dimensão. A realidade umas vezes assusta-me, outras entristece-me. Em raras excepções vem em dose dupla, completa, o que me faz consciencializar a minha reduzida inteligência. Felizmente só me aconteceu uma ou duas vezes na vida. Pormenor importante, que não faz de mim uma pessoa mais inteligente.

( Não durmo com eles, o que me está a colocar num território de difícil conjugação. Temo necessitar de os manter noite afora, bem ajustados, aconchegados ao meu rosto, a cobrirem-me as inúmeras rugas de expressão.)

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