segunda-feira, 1 de maio de 2017

pombos

O meu marido disse-me hoje que finalmente se desfez da magia do nosso sexo. Agora era como se ali pudesse estar uma qualquer mulher em vez de eu própria, como se de repente o que significasse o amor fosse um bocado de carne com pernas e coxas, como se a minha cara e a expressão do meu rosto fossem um pormenor secundário, que se dispensa na hora de dar azo às vontades. Não fiquei mesmo nada surpreendida. Não me atingiu em lugar nenhum, foi como se aquelas palavras quisessem dizer exactamente o contrário, foi como se da boca dele saísse um inverso, que me desse o conhecimento do seu amor por mim, e do que eu lhe represento nos dias da existência. Passado umas horas fiquei a analisar o sucedido. Fiquei sorumbática, taciturna, qualquer coisa entre o angustiada e o pensativa, tudo enquanto o vizinho da frente, gordo e de bigode farto, alimentava os ratos voadores a pão duro, uma migalhinha de cada vez. Demorou uns bons minutos, e eu fiquei-lhe tão grata pela paciência. O sol mal nascia, e a passarada barulhenta voava ao redor das suas pernas, enquanto ele retirava de um saquinho de supermercado as bolas de pão retardado e as desfazia entre as duas mãos, a olhar para o ar, como se aquele pão não significasse coisa nenhuma. E não significava. Pão é pão, mas aquele era duro, bolorento, esverdeado, já não satisfazia as necessidades da casa, nem torrado com boa manteiga, nem de açorda, nem em quadradinhos para a sopa de tomate fresco. Passados uns minutos, já o sol ia mais alto, já os pombos voavam, já as pessoas esticavam as pernas na pista escura do rio, o meu marido acordou. Apareceu-me de mansinho por detrás dos meus ombros, deu-me um beijo no pescoço, ligou a máquina do café e acendeu um cigarro, ao mesmo tempo que abriu a janela de par a par, para sentir a brisa na cara e respirar ar puro. A conversa foi amena, era feriado. Não havia missa mas havia o ócio, próprio dos comunistas no dia do trabalhador. Como nada mais havia para fazer, discutimos política na mesa da cozinha. Recuperamos bons programas de sátira, enumeramos maníacos de intelectualidade comprovada, dissertamos sobre os mestres da nossa história, um conjunto de personalidades que o País possui, algumas esquecidas nos cofres da loucura, outras eternizadas  pela genialidade. Todos os grandes têm questões estranhas, concluímos por fim. Fernando Pessoa era detentor de uma eventual bipolaridade, Antero de Quental levou a sua vida ao destino do suicídio, numa depressão constante, outros, muitos outros, verdadeiramente grandes, deixaram que a própria vida passasse entregue ao mundo interior do inconsciente fragmentado. Foi muito animada a conversa, e quando nos levantamos já não havia nem homem, nem pombos, nem pão. Ele agarrou-me pelos ombros e disse-me, ao meu ouvido, - minha querida, és o amor da minha vida. Virei e cara e beijei-lhe as mãos. Senti-me tão sossegada.

4 comentários:

  1. Há palavras que nos algemam o olhar. Estas assim são.

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  2. CF, não fico surpreendida que o que o marido lhe disse sobre o desfazer-se da magia do sexo, não tenha causado perturbação. Depende do significado interpretativo que é atribuído ao sexo e a razão de ele, sexo, acontecer, e sobretudo do contexto em que ele disse.
    Se ele o dissesse em contexto violento e com o objectivo de a desconsiderar, ou como confissão avulsa do tipo sinceridade sem rei nem roque, isso certamente que teria impacto negativo.

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    Respostas
    1. Isabel, muito do que eu escrevo, não tem razão, nem rei, nem roque... Mal de mim se assim não fosse... :)

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