sábado, 14 de janeiro de 2017

mofo

Leio todos os dias um conto que persigo há meses. Leio um livro de Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, uma obra monumental que faz rir o mais irado. Leio ainda mais um ou dois livros que encontrei num caixote cá dentro de casa, arrumado no fundo de um armário de roupas impróprias para consumo. Uma vez por ano costumo deitar um olhar atento às caixas abandonadas. Nelas encontro sempre uma mala que merece voltar à vida, um livro que preciso de reler junto com todos os outros, um vestido que já é moderno outra vez, umas calças com quinhentos anos que estão rasgadas nos joelhos, nada de muito preocupante, a moda encarrega-se de reciclar o que outrora era divinamente obsoleto. Nesta última visita encontrei ainda um relógio azul dentro do forro de um saco velho, e um casaco de pele velhíssimo, preto e gasto, carregado de um charme que só a idade sabe ter. Deparei-me com umas moedas de escudos, umas fotografias amareladas, uns cadernos de psicanálise escritos por Freud e uma lanterna, dos meus tempos de escuteira. Fiquei por ali um bocado a cheirar as peças. O odor do pó era ligeiro, a história que carregavam, muito embora invisível aos sentidos, era bem mais interessante. Lá no fundo da caixa, escondido por todo o material digno de feira de velharia, estava uma cassete de James. Ó, meu Deus, mas que frente a frente mais impossível: a modernidade não vai tão longe, e mesmo na minha casa, um tanto ou quanto desprovida de tecnologia adequada, já não existe nenhum leitor onde a dita se oiça, muito embora disponha de muito espaço para dançar Sometimes, Born of frustration ou Sit down, e alguma vontade de o fazer. Hesitei no que seria a acção mais adequada. Ponderei se deveria ir a casa do meu avô, mestre em cassetes, fiel depositário de todos os álbuns de Amália, Tonicha, Maria da Fé, entre outros de origem poeticamente lusa. Recuei a tempo, achei por bem poupar-lhe o gira-discos a tamanha afronta, nunca na vida deve ter rodado uma cassete em língua estrangeira, poderia morrer na hora, engolir a fita, cuspir as músicas sem sonoridade adequada, quem sabe até atacar-me por tal deslealdade, a mim e ao velhote, facilitador do delito. Pensei numa atitude mais sensata e decidi ouvi-las no local de sempre. Não sei ao certo o porquê, mas o efeito não saiu o esperado. Ao ouvir Sometimes, por exemplo, não consegui sentir que os olhos de alguém me levassem à sua alma, e fiquei arrependida de não ter ousado a escuta activa, em frente ao guarda-fatos do meu avô: aquele espelho, colado à porta de madeira com parafusos cheios de ferrugem amarelada, serviu em tempos para que eu dançasse a acreditar no impossível. Valeu-me por fim um livro dos que trouxe comigo. Há palavras escritas pelo tempo, colocadas em papel por algum dedo erudito, que valem por mil coisas. Quer tenham sido lidas há anos, quer tenham sido decoradas ontem, quer sejam relidas hoje, quer sejam descobertas daqui a séculos, por outra vida qualquer, que goste do cheiro do mofo. 

(Não vos ponho em escuta os James. A valer seria ali, entre quatro paredes, há muitos anos, onde tudo era do tamanho dos meus olhos. O resto, esqueçam. É tudo mentira.) 

2 comentários:

  1. Algumas coisas continuamos a amar, outras até nos parece obsoleto o termos feito, até com as pessoas isso me acontece.
    ~CC~

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