segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

silêncio

Percorro a rua muito devagar dentro de um carro cinzento, conduzida por uma companhia grisalha e sorridente. Sei ao que vou, sei sempre para onde me dirijo, insisto em ser guardada pela segurança de um destino escolhido, tão incerto como qualquer outro proposto pelo infinito das possibilidades. O sol espreita a estrada e a luz acompanha o que se esperava ser um dia normal. As flores fazem lembrar uma primavera apressada, os vinte graus no marcador permitem que a janela se abra e que o vento despenteie quem passa e quem segue. Há crianças que saíam da escola e pessoas que passeiam num passo miudinho de sossego. Invejo-as, roubo-lhes o sorriso, aproprio-me daqueles passos lentos e mando abrandar com a desculpa da regra da boa educação: não deveremos chegar nem cedo nem tarde num primeiro dia de um local combinado. Perdi-me no caminho de terra que nos levava à casa que se avistava ao longe, branca, perfeita, percorrida a janelas e a sol, rodeada por umas pedras de calçada com desenhos de gosto requintado. Os cães da entrada ladraram com uma simpatia acolhedora. Entro no salão. Elas desaparecem de pé de mim, e eu fico sozinha a olhar para o espaço com muita satisfação. Tem tudo o que eu aprecio numa casa. Um piso térreo, uma sala grande, uma mesa de jogo tapada do pó. A lareira situa-se exactamente no meio da sala, e à volta descansam sofás lisos, almofadas desenhadas, cestas de verga e muitos livros com ar vivido. Um gato passeia-se como se a casa fosse dele, e eu fico a mirar-lhe os passos com uma admiração considerável: aprecio em demasia quem se julga sem medo o próprio dono do seu corpo. Dou uns passos vagarosos e dirijo-me à janela aberta para um terraço onde se encontram cadeirões e mesas, guardados no alpendre de madeira envelhecida. O sol já ia alto, mas não me importei com a ameaça, a natureza sabe o que faz e eu pertenço ao campo e às ervas do chão. Sentei-me e respirei muito fundo, enquanto olhava para umas oliveiras distantes, velhas, torcidas, comidas pelo tempo. Fiquei uns minutos e entrei de novo na sala, onde assisto a um programa a preto e branco, tranquila, à espera. Porém, nada naquela casa é tão tranquilo. Estive ali por uma precisão maior, num antagonismo completo, uma ironia da vida, e estive o resto do dia a tremer de dor no pensamento. Deveria guardar em mim o segredo das profissões humanas: não te envolvas. Faço cada vez mais o contrário dos ditos: vou de cabeça, dói-me, o rigor instala-se inúmeras vezes como um soco que me atravessa a garganta num nó. Nestes dias, a dureza expressa engole-me a voz. 

2 comentários:

  1. deverás fazer o que te dá alento por dentro, seja em forma de adrenalina ou serenidade....nem mais nem menos!


    bom dia


    -____-

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    Respostas
    1. Eu faço. O alento está, mas muitas vezes faz doer à minha alma...

      Obrigada, Moonchild. Boa noite

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