sexta-feira, 7 de abril de 2017

armanda

Dizem por aí que a dor não mata, mas eu não concordo. É o conceito que é controverso, morrer não significa apenas deixar de respirar, deixar de comer e de andar, deixar de dormir e deixar de acordar. Para morrer é preciso alguma coisa estar viva, e chegados a este ponto será por certo facílimo de perceber que podemos matar coisas como sonhos, pessoas, ambições ou bocados de nós próprios, e é essa a morte infligida pela dor que mata. Não sei se já vos falei de Armanda, a senhora que começou a morrer devagar, como se gostasse do sabor do corpo a definhar em cada dia que passava. Gostar gostar não diria, mas achou por bem não lhe fugir a tempo, sei lá também se o teria conseguido, e sendo assim foi perdendo a cada hora um bocadinho de si, primeiro com o primeiro marido e as facadas que este lhe deu, depois com o segundo e os nomes que lhe chamou. Com o primeiro perdeu bocados de pele e de integridade, matou o amor e o sonho, deu cabo da felicidade. Com o segundo, e apesar de já bem morta, conseguiu matar-se ainda mais a si própria, passou de senhora a puta, de mulher a esfregão, de dona a criada, e de pessoa a coisa nenhuma. Nesse dia, em que já era nada, olhou para a janela e descobriu que não lhe mataram os filhos. Continuavam os dois de olhos bem vivos, a olhar para ela e a esperar que vivesse, mesmo depois de morta, a mais dura das dores que já sentiu. Nesse dia fingiu que estava viva, vestiu o seu melhor casaco, adornou-se de mala e sapatos, colocou uma camisa de seda que fazia com que quem passasse a julgasse viva, e para se ver na força dos olhos dos outros caminhou por Lisboa, dia e noite, ora com medo, ora com vagar, ora depressa, ora a cantar. Subiu calçadas e bebeu nas fontes, trepou colinas e espreitou o rio, matou pelo caminho a vergonha e fingiu que lhe nascia no lugar das pernas um caminho, que a levaria ao colo a um lugar incerto, longe do sítio onde morreu. Pegou nos dois e nunca mais parou, crente da sua morte e da vida deles, ciente de que no corpo dela nada mais vingaria a não ser um mal que a matasse de uma vez, lá longe no tempo. Um dia destes, um desses que um dia a salvou, matou-a de uma assentada. Deu-lhe um golpe certeiro, açoitado pelo vento, sem dó, piedade ou amor, e deixou-a derrubada no chão de uma casa alheia e fria, com janelas fechadas e um mundo vazio. Armanda não sabe o que lhe morreu mais naquele dia. Não sabe que bocado lhe restava, que sangue ainda lhe escorria, que palavras lhe nasciam ou pensamentos lhe sobravam. Levantou-se a custo, mas do lado de lá não havia olhos ávidos que a erguessem mais, não existia adorno que a levasse até Lisboa, não havia noite que lhe refrescasse esta vergonha, não a de um filho que mata uma mãe. - Logo não morro de uma vez, diz-me muito baixo, quase nem a oiço. - Não diga isso, insiste alguém lá do fundo do corredor, - a morte é que sabe quando chega. Eu não concordo, acho que a morte não faz ideia nenhuma de quando chega. Quando muito, tem uma vaga ideia de quando vai.

4 comentários:

  1. tenho visto pessoas que morreram várias vezes a 'ressuscitar' quando começam a trabalhar espiritualmente. a sério :)

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