sábado, 27 de outubro de 2018

antídoto

Odete tem muitos ciúmes de Rosa. Rosa, discreta na voz e opulenta na presença, tenta passar despercebida, mas a rectidão das palavras, a franqueza dos actos e a eficácia dos pensamentos, não permitem. Vê-se a léguas de distância, enquanto caminha a passo certo e calmo, sem grandes acelerações ou dúvidas que a impeçam de prosseguir. Sempre a senti incómoda, ou não fora este mundo um lugar onde o certo desinquieta o errado, e onde a inveja arrebata corações confusos, em vez de os fazer aprender a comportarem-se. Hoje o tema foi um assunto onde Odete nada tinha a ver, mas que de todo, queria saber. A ira acomodou-se no seu metro e cinquenta de pessoa, levou-se das maiores razões de injustiça, ressuscitou memórias alojadas de informações vedadas, e gritou aos sete ventos uma suposta discriminação, como se tudo o que se dissesse, fosse de ordem pública, e tudo quanto se calasse, fossem calúnias direccionadas à sua própria pessoas. A dúvida, todos sabemos, dá lugar à mais feroz zanga, protagonizada por uma mulher. Nenhuma pode com ela ao colo muito tempo, pesa, inquieta, desassossega, desencaminha o espírito para a malvadez da existência. Há algumas que moderam a dose da descarga, refreiam o acto, calculam o timbre, arrumam a emoção, mas Odete não se vai de modas, quer saber, e mata quem se atravessar no caminho. Quando a encontrei, juro, deitava fumo pelas orelhas. Tentei que se sentasse e respirasse fundo, regulasse a emoção, exterioriza-se de forma mais ou menos contida a sua zanga, soltasse, com parcimónia e longe do alvo, o mórbido veneno. Estou certa de que resultou, abandonou-me bem mais sossegada, mas desde esse momento que me encontrava enfastiada, com umas dores no estômago, uma acidez no esófago, uma revolta intestinal. As mulheres injustiçadas, mesmo que em processo de imaginação, são perigosas. Acartam uma força bruta suficiente para desordenar o mundo, desencaminhar o homem, vingar o ego, e quebrar de vez quem se julgue em vigor, capaz de estancar a enxurrada. Num ápice esse  pobre alguém afoga-se, inunda o corpo com a peste e respira a custo, como um peixe fora de água. Como paga, trouxe-me há pouco uma caixinha de dióspiros, uma delicia comidos com canela. De uma textura inconfundível, estranha, pastosa, difícil de definir. Comi dois, e melhorei significativamente a minha indisposição.

Há energias que danificam, mulheres que quando respiram horas depois, parecem outras mulheres, e antídotos realmente milagrosos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

amor-perfeito

A facilidade com que os "bons" atormentam o outro, seguirá certamente de perto o número de religiosos obsessivos que desdenham o vizinho. E atormentam, também. A humanidade peca por fraca, é necessário corromper para enaltecer o ego, faz parte de um traçado mais comum do que o circuito da necessidade. Nela estão estampadas vontades relacionais não satisfeitas, desamores, injustiças, intolerâncias, fragilidades inconsequentes de todos e para todos, uma roda viva, uma corrida mais louca do mundo, sem fim, e um fim. Estamos todos mais ou menos envolvidos. Pé dentro, pé fora, alguns, acredito, numa fugaz tentativa de desvio para lá da norma, uma remada em sentido inverso, um choque frontal com a dificuldade, um avesso fenomenal, digno de Nobel atribuído em causa justa, por esferas de análise superior, sem tribunais ou algoritmos manipulados. O mundo inverteu, e a ovelha negra é a ovelha branca, que acarta a saúde e a paz, ou a humilde tentativa. Com ela, carrega o peso da mudança, uma revolução, portanto. Sem cravos vermelhos, mas cravejada de amores-perfeitos.

(Uma vingança do interior sobre o exterior.) 

terça-feira, 23 de outubro de 2018

juízos

Juízos, por mãe preocupada. Tão isto... Como se por vezes o que ela escreve me ajuizasse por dentro, sem ela saber. :)

sábado, 20 de outubro de 2018

livro

D. Alice diz-me sempre que há livros para ler de noite, e livros para ler de dia. Nunca lhe dei grande crédito, confesso, muito embora vá trocando com ela inúmeras sugestões de leitura. Passado uns anos, acho mesmo que terei de lhe dar a razão da convicção. Andava há noites a insistir num livro complexo, enfadonho, sábio, mas muito difícil. Sempre que lhe pegava encontrava reunidas inúmeras sensações, desde o conforto do conhecimento, à insegurança da incompreensão, tocando de perto a beleza das palavras, e fugindo rápido das metáforas encriptadas, injustas para quem aprecia uma boa comunicação. Tomo  a consciência de que sou persistente, em diversos domínios da vida, um defeito, tal e qual a gula, entre outros de menor monta em termos de peso real. A persistência é o caminho do êxito, dizem alguns sábios, certos do trabalho a efectuar no caminho da evolução, esquecidos de que a desistência, também poderá ser uma virtude (ou  a adaptação, ou a substituição). Desde que abandonei aquele livro e me dediquei à simplicidade, que a minha vida ficou mais clara, mais limpa, mais lógica, mais possível, mais certa de que não se deve partir, para não vergar. É claro que há dias em que tenho de lá voltar. De manhã cedo, mal acordo, antes de enfrentar o cansaço do dia, abro uma página ao acaso, leio umas linhas e percebo com a clareza da manhã, que a vida pode ser mesmo muito difícil de ser lida. Perco uns minutos nesse exercício, enquanto o café me acorda quase tanto quanto o livro me intriga. Abandono a chávena até ao dia seguinte, e o livro até qualquer dia (nunca se sabe quando precisarei de voltar).

terça-feira, 16 de outubro de 2018

indignação

Nos dias de hoje fala-se de violência sexual com a clareza que a comunicação social nos permite. Ontem abordou-se o assunto em prós e em contras, como se a discussão aberta pudesse exterminar um mal de sempre, mais entranhado no mundo do que o cheiro das traças nos armários esquecidos. Mas o que pareceu causar mais celeuma, foi o beijo aos avós, ao qual as criancinhas não devem ser forçadas. Ergueu-se o mundo e as vozes, e parece que ninguém quis perceber. A questão ali não era a família, o beijo ou a educação, mas a transmissão da importância do limite do corpo e da vontade. Mas é claro, soa sempre bem caírem os santos do altar, ouvirem-se bem alto as indignações, as incredulidades e as objecções. Pela minha parte, fico feliz quando o meu filho beija qualquer um dos avós, não por educação, mas por afecto. Criado por todos eles e pelo próprio, na partilha das emoções dos dias, das dificuldades, das vitórias e das alegrias. Se este beijo se alicerçasse em obrigação, como se os mesmos fossem um transeunte que nos cruzasse o caminho, é que eu ficaria preocupada. A esses ele só deve respeito, como todos, a toda a gente. Mas aos que insistem desejo força. Levantem-se, ergam-se, batam no exemplo com fúria e crueldade. É tantas vezes o que de melhor sabemos fazer,  sem pensar, tudo igual a zero em consequências ou resultados. 

terça-feira, 9 de outubro de 2018

instante

Há exactamente dezanove anos o meu mundo ficou mais pobre, pela segunda vez. Albertina morria numa cama de hospital, do outro lado do rio, tão longe, como se a morte pudesse ser menos sentida quando acontece na fronteira de um abismo. Nunca me esquecerei do que vi nesse dia. Um corpo já morto a respirar de cansaço, uma cor cinzenta, uma imagem que me atravessa como se ainda agora eu sentisse o cheiro do fim, a comer-me por dentro, como um bicho ruim. Esse instante instalou-se na minha memória, e nunca mais se apagou. Com ele caminham muitas horas de vida, que amadurecem comigo em todos os passos que dou, nas escolhas que decido, nas serras que me limitam os avanços. Caminham rápido, tal e qual os seus passos, que andavam numa direcção infinita, presos numa pele escura, tingida pelo sol e pela amargura, que parecia persegui-la muito mais do que o ar que respirava, um dia de cada vez. Albertina não devia ter vivido há tantos anos atrás. Quis o destino que nascesse fora da sua época, altura em que a mulher servia para servir o que o homem quisesse, e a sua vontade emergisse apenas para regatear, sem fazer e sem escolher. Ainda assim, dava uns laivos de actos nobres e fortes, quase tão poderosos quanto os que a vida e o marido lhe arremessavam ao pêlo, paus, fome, doença e morte, antes, muito antes do que o meu amor por ela poderia escolher. Esqueceu-se de lutar pela vida uns dias antes do fim, e nunca a perdoei até há pouco tempo. Hoje sei que fez tudo o que podia fazer, e que ninguém desiste, se conseguir continuar: a culpa não foi dela, foi da Era em que nasceu. Há sempre um culpado nas histórias da vida, um acaso que não pertence a ninguém que se conheça, mas que governa cada momento. Não sei se penso muito nisso, mas agora que me debruço, sinto que existe pouca coisa no mundo tão poderosa como o instante. Pode fazer nascer, pode fazer morrer, pode perpetuar-se para sempre na nossa memória, e nunca mais nos largar. Nem que se viva muitos anos, nem que se engula muito riso, nem que se esqueçam muitas lágrimas, nem que se sorva muito pó.

sábado, 6 de outubro de 2018

calor de Outubro

Quando chego a Outubro, necessito que as cores se vistam de Outono, as noites refresquem e os dias se tornem de gosto doce, a lembrar castanhas. Não aprecio o calor tardio e doente, não me acolhe o cansaço, não me oferece um colo fresco, não me aligeira as tardes que se estendem como se a noite não precisasse de um encontro. Quando assim é, sei que o ano não me cheirou a próspero. Por vezes, pairo perdida por entre as poeiras que me fazem travar os passos, cheiro-as devagar, tento espreitar por entre as névoas que me turvam os olhos, penso, repenso, e não descubro nada. Agosto fora, Setembro adentro. É necessário sentir os primeiros de Outubro, para que a clareza me inunde o espírito, e se faça luz no meu corpo: está quente, não cheira a fresco, não se renovam os ares nem se respira o nascer. Outubro é um mês bom, um dos meses da minha vida, onde alguns me nasceram, onde outros me morreram. Oxalá refresque rápido e chova, não há como o cheiro da terra para desenhar na água doce e fria, todos os caminhos do mundo. 

( Sou sempre demasiado tardia a ler os sinais da natureza. Uma doença, tal como o calor de Outubro)


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