terça-feira, 9 de outubro de 2018

instante

Há exactamente dezanove anos o meu mundo ficou mais pobre, pela segunda vez. Albertina morria numa cama de hospital, do outro lado do rio, tão longe, como se a morte pudesse ser menos sentida quando acontece na fronteira de um abismo. Nunca me esquecerei do que vi nesse dia. Um corpo já morto a respirar de cansaço, uma cor cinzenta, uma imagem que me atravessa como se ainda agora eu sentisse o cheiro do fim, a comer-me por dentro, como um bicho ruim. Esse instante instalou-se na minha memória, e nunca mais se apagou. Com ele caminham muitas horas de vida, que amadurecem comigo em todos os passos que dou, nas escolhas que decido, nas serras que me limitam os avanços. Caminham rápido, tal e qual os seus passos, que andavam numa direcção infinita, presos numa pele escura, tingida pelo sol e pela amargura, que parecia persegui-la muito mais do que o ar que respirava, um dia de cada vez. Albertina não devia ter vivido há tantos anos atrás. Quis o destino que nascesse fora da sua época, altura em que a mulher servia para servir o que o homem quisesse, e a sua vontade emergisse apenas para regatear, sem fazer e sem escolher. Ainda assim, dava uns laivos de actos nobres e fortes, quase tão poderosos quanto os que a vida e o marido lhe arremessavam ao pêlo, paus, fome, doença e morte, antes, muito antes do que o meu amor por ela poderia escolher. Esqueceu-se de lutar pela vida uns dias antes do fim, e nunca a perdoei até há pouco tempo. Hoje sei que fez tudo o que podia fazer, e que ninguém desiste, se conseguir continuar: a culpa não foi dela, foi da Era em que nasceu. Há sempre um culpado nas histórias da vida, um acaso que não pertence a ninguém que se conheça, mas que governa cada momento. Não sei se penso muito nisso, mas agora que me debruço, sinto que existe pouca coisa no mundo tão poderosa como o instante. Pode fazer nascer, pode fazer morrer, pode perpetuar-se para sempre na nossa memória, e nunca mais nos largar. Nem que se viva muitos anos, nem que se engula muito riso, nem que se esqueçam muitas lágrimas, nem que se sorva muito pó.

2 comentários:

  1. Foi difícil conter as minhas lágrimas ao ler, senti que conhecia essa e muitas outras Albertinas. Está maravilhosamente escrito.
    ~CC~

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