segunda-feira, 30 de setembro de 2013

mitos

Viveremos por certo eternamente subjugados ao mito da força intelectual. E viveremos assim muito bem. Acreditamos nisso, causa-nos um certo conforto a ideia de que a mente concebe e a matéria obedece, de que só transpomos do corpo para fora o que o nosso sistema interno permite. A complexidade excede o dizível e por isso apuro o pensamento. Ocorrem-me duas situações de rompante, totalmente distintas entre si. Uma em que a força física vence, por imposição de supremacia declarada. Há aos magotes por ai, concluo que o entendimento viva lá adormecido. Outra em que vence o intelecto, por apenas nele conceber determinadas construções. Esta neste caso é minha, mas certamente não só. Porque chamo então de mito a questão da força intelectual? Por ser imensurável, indescritível, inaudível, impossível de converter em substância. Vejamos a questão do Q.I. Meço-o amiúde com cubos devidamente destinados ao efeito, sequências lógicas de acção que determinarão a capacidade de abstracção e de ordem, labirintos infindáveis e complexos que ditarão a existência ou não de capacidade de visualização num todo, operações aritméticas complexas que atestarão o raciocínio matemático. Traduzo tudo, abusivamente, num número inserido numa tabela aferida à população portuguesa, dito que a criança tem uma inteligência suprema, enquadro-a na perfeita capacidade de resposta escolar, mas a dita erra as contas de matemática. Meros exemplos, perfeitas indagações, puras manifestações efectivas da complexidade que nos regulamenta a acção. Interna, externa, de complemento. O cerne, o complemento. O contrabalanço do dentro e do fora, aquele que me faz pensar no Homem, dar pouca crença à teoria prática, desprezar a certeza absoluta e amar, de paixão apaixonada, o mito da subjectividade e toda a sua consequência.

( A propósito, leiam o que disse uma criança gira, aqui.)

sábado, 28 de setembro de 2013

palavras

Dizem que me vão levar um bocadinho do corpo com a mesma descontracção com que dizem que vão comer uma torradinha ao bar do hospital. Olham-me de frente sem procurar palavras (detesto pessoas que não procuram palavras) e atiram com as primeiras que vêm à boca, que podem soar bem ou menos bem, podem vir a direito ou podem vir de soslaio, podem atingir-me em cheio ou procurar o caminho para que me cheguem sensatas, se tiverem vontade própria. Não têm, disparate, nunca têm, as palavras não vivem por si, soltas no mundo a procurar combinação e cuidado, as palavras são uma arma certeira que utilizamos em comunicação, que transportam cargas efectivas de sentires manifestos, que nos vivem do corpo para dentro e dele para fora, mas nunca sem imposição. Há as que muito nos dão e as que pouco nos trazem, as que amamos e as que odiamos, as que tememos e as que ansiamos, muitas delas atribuídas a circunstâncias específicas, e por isso merecedoras de um lugar de destaque. Olham para mim e explicam-me a mecânica da situação como quem me relata as regras de um jogo qualquer, dissertam rapidamente sobre o furo pequenino que sarará em meia dúzia de dias, o que muda e o que ficará igual, quem constituirá a equipa e quanto tempo será necessário para que eu regresse a casa com um pouco menos de mim. Tudo se processa de forma rigorosa e profissional, tal e qual a da costureira que nos corta da saia o pedaço de pano que esgarçou, vai levar menos um bocadinho, cortou-se aqui, não havia remédio, ambas coisas próprias da idade.
No seguimento saímos e inevitavelmente vamos pensando na constância dos lugares, das coisas e das pessoas, na constância do corpo e na constância da alma, e percebemos que passamos uma vida a adaptarmos a mudança a nós e nós à mudança, ao mais e ao menos, ao muito e ao pouco, ao que precisamos e ao que dispensamos, ao que queremos e ao que conseguimos, ao que gostamos e ao que detestamos, ao que tememos e ao que alcançamos. E pensamos também, porque há dias prósperos a pensamentos, que o vazio das palavras é uma realidade tão palpável como o sumo das mesmas, que a utilização que lhe é dada é de uma importância fulcral, e ainda que o vento que as leva nos ditos populares pode ser o vento quente do estio, persistente, incómodo, sobranceiro. Eventualmente, e por vezes, vento nenhum.   

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

primaveras

A manhã despertou de uma noite escondida no fundo do armário das vontades, atada a fitinhas de seda que me emprestam doçura às mãos, pequenas, velhas, mirradas. Olho-me para o espelho sem delongas que permitam o traço preciso nos olhos castanhos, uma banalidade que vê de manhã cedo o cheiro do meu filho enrolado num lençol de quadrados, nariz de fora e mais nada. Apresso-me com os caracóis em desalinho, as flores secas espalhadas no chão, os bichos da casa que teimam viver e morrer quando o tempo quiser, é a vida e é a morte, esquecemos sempre de frisar esta última. Persigo as horas que fogem de um lado e tardam do outro, e de seguida espreito algures uma ardósia que pergunta que idade eu teria se não soubesse a que tinha. Depende, apeteceu-me responder. Tenho muitos anos logo de manhã cedo, quando acordo e quando afago, quando desperto para a vida e para a morte, quando tenho de cumprir o rigor dos dias que nascem quando eu queria que ainda estivessem apagados, nem que fosse só por mais uns minutinhos. Tenho poucos quando as vontades me dão cabo do coração descompassado, com idade suficiente para já ser crescido e ter juizinho. Tenho muitos quando como com uma vontade de leoa o que se espalha no meu corpo que absorve até o ar que trespassa as ruas vazias do Inverno. Tenho poucos, pouquíssimos, quando me encosto à ternura dos dez e me deixo estar ao lado dela enquanto como pipocas doces, que nem sempre aprecio o sal. Tenho imensos, tantos, quando olho para o calendário, mas não tenho quase nenhuns quando me agarras nas mãos como se eu fosse uma criança, de olhos abertos ou fechados, e vou. E também ai, verdade das verdades, acabo por não saber ao certo quantos tenho. Tenho alguns quando imagino o sobrinho que me nasce não tardará outra lua, o Outono é sempre bom para vir ao mundo, dias pequenos e frescos, sem excessos de claridade. A propósito, gosto do Outono, muita da minha vida começou no Outono: comecei eu, começamos nós, às vezes parece que há poucos, outras que há muitos anos. Fico até com vontade de te perguntar há quantos anos começamos, na tua cabeça, no teu colo, no meu rosto, no teu corpo, no nosso beijo. 

terça-feira, 24 de setembro de 2013

psicotrópicos

Não nos espantemos, ora, não há tempo para humores ligeiros, para afagos apaziguadores, para acções tranquilizantes de corpo e de alma. É o "alimento" condensado, o menor esforço, o preço mais baixo e o resultado garantido. Também não há culpas imputáveis, há somente a procura da satisfação própria de cada um numa sociedade em que a disponibilidade e o sossego se encomendam com muitos dias de antecedência, vão dar a volta ao longe e chegam cansados às mãos de quem pediu por precisar, sem carta e sem selecção. Não nos espantemos, pois, e mais do que tudo não condenemos, anda tudo farto de indignações. Pensar já todos podemos, intervir no que nos tiver ao alcance, também. Analisar alternativas em causa própria, quando as há, será além do mais inteligente. É por isto que números aos magotes nunca foram o meu forte. Setenta e cinco mil embalagens por dia é muita embalagem, convenhamos, e se o número não servir para nada além de constatações formidáveis, é por si só uma afronta ao País, aos técnicos, aos Portugueses e à sociedade no geral. E se assim for, perdoem-me a franqueza, mas mais vale deixarmos em sossego clandestino o silêncio da embalagem colorida, o ânimo fresquinho acabado de sair do invólucro fechado, a felicidade que se engole em forma de efeito concreto ou de efeito placebo, não importa, desde que seja um efeito qualquer que faça rir quem chora, animar quem definha, adormecer quem esbraceja, ou calar quem grita. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

...

Diz-me pelo telefone que a idade a ataca. A quem o dizes menina, a mim doem-me partes significativas do corpo, dizem que é dos anos, aqueles que me tingiram a tez de cansaço. Há, e tenho uns olhos que me ardem às vezes, quando a noite se esquece de mim e me deixa plantada na janela do quarto. A minha bisa, recordo-me sempre dela, engelhou até aos 100, e eu lembro-me muito bem de que engelhou devagarinho. Era do lenço preto que lhe escondia a cara e da sardinha rançosa que comia amiúde ao jantar. A culpa será então do salmão fumado e do pãozinho de sementes com queijo amanteigado. Por outro lado também já quase não há quem aguente o sol a sol, a não ser por detrás de uma janelinha camuflada, à guarda do ar condicionado. Caramba, há uns dias a esta parte que o conservadorismo parece nascer-me nas pontas dos dedos. Não, não é isso, não é nada disso, não sei se viveria a sandes de courato, mas eventualmente viveria direita muito mais anos. A única maleita que lhe conheci era o desassossego cardíaco que impedia as pessoas de se situarem do seu lado esquerdo. Era uma palpitação de morte, que nunca a matou a não ser mais tarde, sozinha numa cama em frente ao oratório. Disseram-me depois que as palpitações eram coisas da cabeça dela, e a partir dai nunca mais dei grande crença à sintomatologia psicossomática, oiço-a, aligeiro-a, trato-a por tu e de cima para baixo. Fazia anos rentinha a mim e dava-me sempre figos e nozes que eu comia no degrau de pedra, nas bandas do alto do monte. O monte entretanto também morreu de cansaço, faltou-lhe a sopa de feijão a fervilhar na panela, os pontos costurados, as galinhas cortadas pelo pescoço.
Não há fortaleza que resista ao requinte. As pessoas, na generalidade, é que não se convencem disso. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

pés de igualdade

Henrique é um depressivo crónico que me lê os estados de espírito com a clareza da água. Funga uma vez quando eu estou bem, funga duas ou três quando não estou. Por vezes tento trocar-lhe as voltas mas nunca consigo. Nessas alturas esfrega os dedos no cabelo como que a querer dizer-me que não o engano. 
Há pessoas que me conhecem há anos e raramente me lêem. 
A minha gata cheira-me e esfrega-se nas minhas desordens, mas julgo-a egoísta, nada a ver com o meu cão. Os animais são muito diferentes uns dos outros e as pessoas também, como se pertencessem todas a espécies diferentes. 
A doença mental sem perca de lucidez desenvolve uma perspicácia desconcertante, e a invasão do meu espaço por parte de quem não deve, incomoda-me. A ausência de sagacidade por parte de quem está próximo, também. As duas em pé de igualdade. Engraçada, é a vitória de uma suposta limitação sobre a desejada normalidade, no campo das relações em sociedade.

( Os gatos são normais e os cães são depressivos crónicos. Nada mais óbvio.)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

mulheres

Mulheres juntas são um fenómeno estranho. Podem carregar com o mundo ou derrubar o mundo, depende apenas do que as move. Também conseguem, e ai reside o perigo, derrubar o que acabaram de construir só por capricho. Somos um fenómeno estranho, já tinha dito?

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

evoluções

Os dias amanhecem cedo. Cedo é sempre cedo demais, logo quando o restolhar dos Invernos nos convida ao cobertor pelas pernas, com chá e torradinha. São muitos os meninos que entram. Já ia em quinhentos, oiço dizer, que esticam a mochila onde os livros balançam numas costas pequeninas rente ao portão, onde se activa o cartão magnético. Também isso começa cedo e eu não sei onde pararemos. É que por vezes penso onde terminarão os limites da evolução. Cartões era só mais tarde. Redes sociais não havia, beijos tinham de ser roubados e às escondidas, até dos olhos dos cães. Palavrões quase não existiam, e se os houvesse era longe de casa, para lá da serra. Havia o pico com almofadinha e os cadernos de linhas, mas jamais um portefólio.  Havia pão com doce, nunca bolachinha recheada com creme de cereais. Também não havia sumos light nem muitos meninos gordos, e isto também deve querer dizer qualquer coisa. Onde terminará a evolução? 

( Não sou nada adepta de conservadorismos. Estou curiosa, nada mais do que isso.)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

...

Ninguém pode viver as minhas dores. São minhas, nasceram-me dentro da alma, perdidas entre um músculo e um suspiro, uma dúvida e uma pertença, o medo e a calma. Trato-as portanto com carinho, abano-as no meu colo quente e segredo-lhes dizeres ao ouvido, embalo-as rente à noite e adormeço-as com o cuidado devido para que não sobressaltem inquietas, com os ventos soturnos de Outono. Hoje, por exemplo, dói-me o meu naco de mãe. Para além de outros, também. Poderia espantá-la, tentar distraí-la, contar-lhes uma história ou uma piadinha cuidada que a fizesse rir e esbracejar de contentamento, mas em vez disso prefiro dar-lhe esmerada atenção. Oiço-a com tempo e paciência, escuto-lhe as razões da existência, percebo-lhe os fundamentos e os anseios, espreito-a por dentro e por fora, arrumo-a em mim. 

(Também não aprecio nada quando as desdenham. São valiosas, valem sempre a pena, o tempo que lhes dedico ensina-me a saber curá-las cada vez melhor.) 

sábado, 14 de setembro de 2013

dentes

Ultimamente perco as noites a olhar para os cozinheiros do Masterchef. Encantam-me os ingredientes espalhados nas mesas, a caixinha mistério de onde saem verdadeiras maravilhas, as cores deliciosas dos alimentos da despensa. Não sou refinada, nadinha, tanto me delicio com um tártaro de salmão como com um bom arroz de cabidela. Só esbarro verdadeiramente com uma concorrente detestável. Um dia destes todos desfizeram um ouriço do mar azul, cheio de espinhos venenosos. Confesso ter esperado ansiosa que espetasse o dedo mindinho num deles e atirasse um gritinho estridente capaz de lhe fazer cair os dentes. Claro que só, jamais desejaria uma consequência mais drástica a uma senhora. Os dentes um a um, devagarinho, parece-me extremamente adequado a uma mulher que diz à boca cheia que é a melhor cozinheira de todos e que me merece ganhar o desafio. Não sabe, possivelmente não merece, certamente até vai perder, e ficaria com uma boca cheinha de nada.

( Nunca devemos engolir demasiada prosápia. Corremos o risco, a sério, de um dia nos caírem os dentes.) 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

...

( Eu sei, eu sei que piadinhas de profissão são qualquer coisa de desprezível...)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

mundo real

Uma menina de oito anos casou com um homem de quarenta. Morreu, no seguimento da sua função. Enquanto as questões culturais superarem a dignidade humana, viveremos sempre numa selva. Enquanto pessoas pertencerem umas às outras, viveremos sempre numa prisão. Isto leva-me a pensar no Homem até à sensação de impotência da sensatez e do respeito, perante o poder. E na terrível derrota da inteligência, pois. O que supostamente nos distingue da bicharada.

( E hoje, só por acaso, é onze de Setembro.)

domingo, 8 de setembro de 2013

da vida

O medo vê-se muito no rosto dos vivos doentes. De resto, o rosto é o único sítio onde se pode ver o medo. Na cara dos vivos doentes vêem-se medos que atravessam a pele cinzenta em ânsias por algum alívio, ainda que fugidiço. A doença terminal expõe quem a atravessa a um luto próprio, por expectativas que findam e por dias cancelados por uma força maior da qual se tem um receio profundo, residente ao lado da fraca esperança. Muitas vezes falsa. A esperança é uma confiança frágil e mortiça que por vezes renasce e nota-se nos olhos. É por isso que os doentes nos confundem o olhar perante um ar expectante e ao mesmo tempo assustado. Nem sempre o exterior age em consonância com a necessidade. Do lado de fora, um lugar confortável, acreditem, ousamos alternar a força com a fuga, uma auto protecção, uma defesa declarada. Somos humanos, achamos que temos direito a tudo. Não temos. Não há rigor cientifico, é certo, mas resta-nos a sensatez da retribuição trabalhada, e sempre, mas sempre, a presença. Não há nada que mais me repugne do que a fraqueza de quem foge ou desdenha os que estão na beira da morte. Até porque a morte é uma escola de vida. A cara dos que estão na beira da morte é o único local do mundo onde eu consigo ver a minha. Todos deveríamos vê-la de olhos bem abertos, senti-la, cheirá-la, saber como chega e como se instala, como nos come e como nos arrasta. Não há como o conhecimento para sabermos viver: quanto mais soubermos, melhor vivemos.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Jasmim


(Fotografia do Paulo)

Segredaste-me ao ouvido ao mesmo tempo que os segundos voavam entre os ventos fortes de Outono e as primeiras chuvas de Inverno. Deixaste que os gestos dissessem o que as palavras escondiam entre os teus olhos verdes e a tua boca grossa, o corpo tem discrepâncias capazes de nos traírem o propósito, asfixiado por sentimentos maiores. Hoje, com palavras ditas e amores falados, agarras-me pelas minhas mãos frouxas ao mesmo tempo que engolimos a cidade a uma velocidade vivaz, incauta, estonteante. A fusão torna a inversão viável e todas as propriedades possíveis, devidamente acondicionadas em almofadinhas cor de terra e de fogo, macias o suficiente para que nelas nos deitemos enquanto o sol se põe para dar lugar à lua, também ela muitíssimo nossa. Só temo mesmo a janela do quarto de qual a espreitamos. Envolve-a uma varandinha florida, pequena e frágil, que a qualquer minuto pode desabar. Exige-me cuidados redobrados, exímia atenção, exagerada cautela. Coloco um pé com jeitinho, depois o outro, e espreito para as ruas calmas enquanto me perscrutas do quarto, sempre num cuidado inquieto por uma veleidade qualquer. Nunca te deixas disso, nunca nunca te deixas disso. Eu olho-te invariavelmente com os mesmos olhos, miro-te por detrás de uns caracóis insistentes que me cercam a testa e me tapam o sinal azul e real que me habita desde a nascença, jamais deveria permitir que o escondessem, não há maior nobreza no meu corpo. Há porém fraquezas muito maiores em mim. Não acautelei convenientemente o meu coração, por exemplo, deixei-o contigo à hora certa, entre um dia e um outro, perdi o norte à exactidão do instante. A partir dele todas as flores dos jardins por onde nos passeamos têm perfume de jasmim, que hoje alaga a cidade e a deixa afundada numa penumbra embaciada por fins de tarde e por beijos. E o que eu gosto dos teus beijos. Aprecio-os especialmente quando os consigo roubar por entre os lençóis quentes da noite fresca, madrugada afora, esbanjados por entre as luzes perdidas de uma qualquer rua sem fim. Agora vou ali mirar o sol de Setembro, para logo depois me esperares no mesmo sítio, sempre igual. Não recearei sequer a varanda do quarto, que há muito me cheira ao aroma forte do jasmim. De lá, consigo ver o mundo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O que será, que será?


( Foto de capa do novo álbum de Cher, actualmente com 67 anos, retirada daqui.)

Sensualidade pura, ou o duro medo de envelhecer?

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

...



( Fotografia (linda de morrer) do Paulo.)

Já me disseram dele o que esquece ao diabo. Amaldiçoaram-no com vozes mordazes no rescaldo das dores que se arrumam lado a lado no armário dos desperdícios esquecidos, junto às aranhas, aos sapos verdes, às saramantigas e a outros bichos medonhos. Juram-me no seguimento a ausência eterna e jamais renegada, ensaiam uma solidão como quem treina uma musiquinha ao piano, dias e dias a fio, vai sempre soando um bocadinho melhor. Ousam espezinhá-lo, entregá-lo ao mundo dos mortos com as próprias mãos, cremá-lo, despejá-lo no monte para que voe com o vento que corre apressado e sem direcção, sem direito a flores e a rezas, a missas ou a orações. Atribuí-se à sua existência a desgraça da tristeza, grita-se em fado acompanhado a guitarra portuguesa, recita-se em prosa e em poesia, com ou sem verso, declamado num palanque ornamentado a flores e a cores, teatraliza-se em gritos e em choros que agonizam quem sente e quem olha a querer saber como é. Ninguém sabe e todos conhecem, ninguém necessita e todos precisam, não há quem o descreva, felizmente sente-se. Sem ele morreríamos entregues à lassidão, submersos em horinhas corridas e sem emoção, sozinhas e magras, sem poesia, sem saudade. Seria o mundo um local sem rei e sem roque, seríamos nós uns pobres sem coração, que bateria ao rigor do compasso sem descompasso nenhum, de marcha sem direcção, de abraços sem redor e sem sal, de bocas abertas a nada, de corpos tementes de coisíssima nenhuma. Será porventura dos mais poderosos constructos intangíveis, uma força bruta, anímica, que  rebenta com a solidez de uma rocha e com os picos de uma montanha, que respira e que suspira, que aspira e que sufoca, que mata e que faz viver. Ainda há pouco o amaldiçoaram de novo perto de mim. Ainda há pouco o definiram como um mero derivado do afecto, um sucedâneo promiscuo com língua e com corpos, uma aspereza que se esfrega até cansar para depois sucumbir ao cansaço da dualidade e regressar à unidade, cada um por si, um por cada qual, no caminho vazio de um sítio qualquer. Assanham-se ligeiramente quando me insurjo em reacção. Recolhem-se depressa numa túnica mal acabada quando me revolto, tapam os ouvidos surdos e fecham a boca morta, abraçam o corpo já velho e acutilam os gestos que pudessem renascer em ligeira euforia de contraditória manifestação. Fecham a porta, voltam as costas e seguem caminho, e eu fico a olhar ao longe, até que ela desapareça, sozinha e descrente, vestida de flores.

(Banalizem o cansaço e a maldade, banam o ócio e a euforia, matem o rancor e a cobiça. Desconfiem do sol e da sombra, questionem o vento e as marés, discutam a terra e a vida. Mas não me minorem o amor. )

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