quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

mais e melhor

Sou bem capaz de considerar que tenho a melhor profissão do mundo. Não em absoluto e em concreto, trato de abstracções, análises internas, deambulações, pecados, rancores e horrores, mas de mim mesma e para mim própria. Digo isto porque encontro inúmeras pessoas de bem, pessoas que no próprio encalço me dão palavras sérias e medrosas, certeiras e pejadas de dúvidas, carregadinhas de razão ou vazias de conteúdo, mas muitas vezes, quase sempre, mais genuínas que  o calor franco do Verão. Habituam-me mal, devo avisar, tabelo pela mesma bitola toda a gente, julgo que o comum dos mortais é todo igual, insisto em crer que por trás de uma cara triste há sofrimento, que a suportar um sorriso existe uma alegria, que na viagem de um grito haverá uma raiva, e que escondida por um rubor de uma face, morará a vergonha. Tudo falso, nada mais errado, nunca vi tiros menos certeiros, palavras mais falsas, crenças mais infundadas, ideias mais descaradas. Mas isto também me leva a pensar que as pessoas de bem estão onde queremos olhar para elas. Para mim, dentro de um gabinete, olhar para alguém que me entrega a ansiedade e crê na minha acção, dá-me um sentir de confiança mútuo que não reside em nenhum outro local do mundo. Chama-se a isto aliança terapêutica, mas eu acho mais correcto dizer que se trata de um processo de crença na evolução da humanidade. Mesmo que ao bater da porta, ao virar da uma esquina ou ao cruzar a hora tudo se desmanche, e fique apenas a possibilidade de um dia destes se fazer mais e melhor. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

imposturice

Cada vez tenho menos paciência para a imposturice alheia. Enche-me de enfartamentos, fastio, dores de costas, bicos de papagaio, que isto do corpo é a mesma coisa que a mente, ao mesmo tempo que a mente é a mesma coisa que o corpo. Há uma tendência suprema de julgar que não. Há uma mania colectiva de desenlaçar territórios, de apartar visões, de entregar a César o que é de César, mesmo quando César é apenas um. Ainda agora, por exemplo, encontro uns escritos que me entorpecem a alma, percorrem-me as entranhas do corpo, entram-me pelos olhos e acordam-me as iras, as peçonhas, entopem-me os filtros da paciência e são bem capazes de me sair pela boca, totalmente desgovernados, capazes de atingir em cheio quem no meio se aventurar. Não mato ninguém, posso dizer, a dose nunca ultrapassa a carga da força devida, mas a verdade é que em caso de analise criminal do arremesso, talvez se conclua que o peso em quilos me valha uma dose profiláctica de tolerância à malvadez. Mas não, os fiscais não atentam nestas minhas necessidades, só querem saber se eu pago ao fisco e estão-se a borrifar para o fingimento do mundo, para o aproveitador, para a minha reacção. Um dia destes, quando eu saltar do patamar da normalidade, vou instituir a genuinidade como um bem precioso, a cultivar nos bancos das escolas desde tenra idade. Antes, muito antes de se ensinar a ler e a escrever. Com certeza pouco depois de aprendermos a falar e a caminhar, como muito bem entendemos.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

maças verdes

Não faço listas de supermercado. Compro sempre a mesma coisa, sou previsível, chata, rotineira, sem imaginação para grandes elaborações culinárias que me retirem do tradicional coelho guisado, do bife grelhado, do frango estufado ou do peixe no forno. Começo sempre pela mesma fila de compras, ralho sempre com a ordenação da orgânica da arrumação, prego sempre que os congelados e frescos deveriam estar no fim e não no meio, deles em diante ainda compro sei lá mais o quê, ainda derreto os tomates, ainda descongelo as ervilhas, ainda esmago as alfaces. A única coisa devidamente orientada em termos de espaço são os ovos, na recta final, ao lado do arroz e da massa, mesmo antes das batatas fritas, logo a seguir aos cereais. Hoje, porém, e apesar da ordem expressa da superfície, da minha obediência devota, do circuito rotineiro dos produtos de limpeza, dos frescos e dos géneros alimentares, cheguei a casa sem saber ao certo o que tinha trazido comigo, em braços, escada acima, a tropeçar de degrau em degrau por falta de iluminação e de convicção de passadas. Foi uma descoberta com sabores e dissabores, encontros interessantes e ausências, troféus e pecados. Descobri cereais de chocolate a dobrar, encontrei cenouras que juro que não ensaquei, descobri bananas verdes que não escolhi, uns pudins que não desejei, e uns cogumelos frescos que já comi ao jantar, fritos em azeite e embrulhados em pão do Alentejo. Não estou nada habituada a estas surpresas, e confesso que fiquei estupefacta sobretudo com umas maçãs verdes, que ninguém gosta cá em casa. São ácidas, pouco adocicadas, pequenas e amarguradas. Deveriam estar em promoção, só posso concluir, e o meu espírito automático deve ter seguido o critério da poupança, sempre presente. Não deveria ter caído em exageros, bem sei, poupar no que não comemos é um gasto excessivo. A vida está cheia de incongruências, e a minha fruteira está neste exacto momento repleta de fruta de uma cor estranha. Temo que se sinta desenquadrada, enjoada, sozinha, perdida no meio da cozinha e ornamentada de uma vestimenta com que nunca na se viu, a pobre. É pelo menos isso que eu sinto, quando me pintam da cor errada.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

(...)

Na sociedade a falta de equilíbrio mata. Sinalizar os filhos e esquecer as mães é um acto de desleixo, que pode custar vidas a mais. Uma mãe que "protege" os filhos com a morte é uma mãe que já gritou demasiado alto, sem ser escutada. A surdez do mundo também pode matar, a indiferença pode ser mais mortífera do que uma metralhadora, e a morte por "salvamento" pode ser mais rápida do que um gatilho, quando o medo se torna maior do que o Homem. 

domingo, 14 de fevereiro de 2016

mulheres

"- Então, o que é que ele estará a fazer aqui?

- Não faço ideia primo, não faço ideia. Conheces o Dilawar, talvez ande de olho em alguma enfermeira, ele gosta de mulheres, quem o pode censurar? Mas com isto só se arranja problemas, não é? Depois temos de lhes comprar perfumes e chocolates e levá-las a passear, que tormento. Uma mulher tem de ser passeada, é assim mesmo, como os cães das velhas francesas."

in Para onde vão os guarda chuvas, de Afonso Cruz

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

um dia destes vendemos DSM no quiosque do jardim

Hoje em dia temos uma tendência brutal em colocar patologia na normalidade. Abafamos os milhões de canários possíveis e adaptativos do ser humano, e tendemos a considerar um padrão único e insubstituível, fora do qual o rótulo se instala com uma linha de nylon resistente e de extracção difícil e dolorosa, mas com uma incidência extremamente incómoda no corpo em caso de permanência. Sendo assim um pequeno desajuste assume carácter de doença, um comportamento alterado sofre acusações desviantes, uma tristeza maior entra directa no campo do estado depressivo, e uma euforia exagerada pode muito bem ser empurrada, sem dó nem piedade, para um registo de consumo ou uma mania, certamente crónica e incurável. É neste registo que muitos nos movemos. Para além dos médicos que abusam dos estabilizadores de humor, temos hoje um Pais de pessoas que sabem cada vez menos escutar a diferença da normalidade produtiva, perfeitamente adaptativa, e que resolvem apertar cada vez mais o cerco da tolerância saudável, reduzindo ao mínimo limite a individualidade. Precisamos, gritamos cada vez mais por uma realidade onde um berro não seja olhado com olhos de horror, e onde uma criança que não consegue estar quieta seja olhada como uma criança, e só como uma simples criança, sem nomes pomposos de arrumação de défices. Onde um adulto solitário tenha um lugar para pensar, e onde um jovem com ânsia de respostas sinta todo direito de perguntar, de questionar, de contestar e de desviar. Este meu mundo necessita urgentemente de terapia adaptativa, não vá imbuir-se de um rigor maior e começar de uma vez a matar as pessoas, as verdadeiras pessoas, as genuínas, as reais, as perfeitamente "normais", libertando somente as mentes pseudo-saudáveis, a matemática e o estereótipo, o certo e o errado. Aí sim a mais pura das loucuras, meu Deus.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

os invisíveis

A vida é um jogo de sorte e de azar, e para nosso bem não pensamos muito nisto. Foi notícia que em tempos não deveríamos ter necessidades de intervenção neurológica ao fim de semana, teríamos de esperar para segunda feira, nada mais natural. Não deveremos ainda descompensar mentalmente no Algarve, não há psiquiatria nesses dias, e no meu distrito de residência  não se pode alojar uma pestana no olho, não há oftalmologia no Hospital. Tudo tem um tempo para acontecer, e a resposta pode variar tanto que pode determinar consequências mais ou menos graves. Não  aprecio encarar a vida num tabuleiro de jogo, mas não deixa de ser assustador saber que pode acontecer precisarmos de um alguém que naquele preciso momento não se encontra ali para nós, estará algures num sítio onde não nos escuta mesmo que se grite, há inúmeras paredes a bloquear. A casualidade e o azar por vezes andam de mãos dadas, e nós humanos não conseguimos controlar isso. E a humanidade pode ser mais invisível do que o ar, é só preciso que naquele momento não haja ninguém a olhar. 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

agente educativo?

Todos os dias descubro coisas que me chocam. Não consigo habituar-me, não passa a fazer-me sentido, não se entranha depois de se estranhar, não se alojam no meu corpo determinadas realidades. Ontem recebi uma criança vítima de bullying, desde que a sua professora primária achou por bem enaltecer, perante toda a turma, que ela todos os dias levava a mesma roupa, e que certamente nem a lavava, ou sequer tomava banho. A criança, de origem humilde e esforçada, passou a ser apelidada de suja, de mal cheirosa, de pessoa com germes e vermes, para além de outras manifestações de outros seres pequenos, mas suficientemente violentos para descriminar, mais ainda quando guardados pelas palavras de uma senhora professora, suposta educadora, eventual agente de educação e crescimento. Conheço a escola há muitos anos, por dentro e por fora. Sei-lhe de cor o cheiro, as cores, os lados saudáveis e os lados podres, a disposição do terreno e as preocupações, as vaidades e as leviandades, e concluo invariavelmente a mesma coisa: enquanto um professor se centrar mais nos números e nas letras, na geografia e na história de Portugal, nos números e nos programas, do que na pessoa e no seu contexto familiar e social, nunca será um verdadeiro educador, jamais passará de um simples agente de transmissão de conhecimento. Pouco mais do que um manual escolar, por vezes quem sabe um pouco menos. O manual não se adequa, mas também não mata em duas penadas, a estima de uma pessoa. 

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