quarta-feira, 29 de junho de 2016

pele

Nada no mundo nos pertence a sério, descubro isso quando o cão da vizinha quase me come o dedo mindinho do meu pé direito. Ficamos todos em pânico, o animal arrancou-me a ponta do dedo e largou a correr por uma estrada estreita, no meio do matagal. Eu fiquei sentada no chão, estupefacta, a olhar para um dedo sem uma unha, um coto pequenino a escorrer sangue, privado da sua segurança. Agarrei logo num lencinho de papel e enroleio-o, antes de chegar ao hospital, precisava de conter a hemorragia. Não tinha dores lancinantes, cheguei a pensar que era feita de um qualquer material contraplacado, modificado, defeituoso, qualquer coisa onde o nervo da dor não funcionasse, e achei piada ao assunto. Imaginei-me a andar por ai, sem que nada me parasse. Poderia saltar de um paraquedas, poderia nadar num mar de monstros, poderia percorrer o mundo nuns patins, andar depressa, dobrar as esquinas, cair e partir a cabeça, levantar-me e continuar. Elá, isso é que era. Ia ainda neste delírio quando encontro a porta do centro de saúde. Lá o meu médico esperava-me, sorridente, e começa a revelar o meu dedo dilacerado, no exacto momento em que me olha para dentro do corpo, pelos meus dois olhos mortos há dias. - Ena, deve doer, vocifera bem alto, temos de tratar já disto, caso contrário poderá não estancar. Senti como que uma pontada forte na ferida, a apanhar-me a perna. Começava na parte que o cão tinha comido, e dava-me a volta pelo corpo todo, com paragens mais intensas em locais improváveis, mãos, joelhos, boca, pescoço, fígado, coração, ossos e ouvidos, quase rebentei de tanta dor. Voltei a casa no instante seguinte. Antes da partida paguei o justo preço pelo dedo que me comeram, e ao chegar à porta descubro os restos dele em cima do meu tapete florido, bonito, comprado há muito tempo numa feira da Nazaré. Olho-os como se já não fossem meus, são um bocadinho de lixo misturado com o chão, um naco de carne mastigada por um animal raivoso, sedento, esfomeado. Varri-o e deitei-o para o lixo, acondicionado dentro de um pequeno saco de congelação. Agora olho para o que sobra dele, e percebo que nada me pertence verdadeiramente. O meu corpo pode, a qualquer hora, cair aos bocadinhos pequeninos e fugir de mim na boca de uma qualquer coisa, pouco mais forte do que a minha pele.

( A minha pele é fraca e mortiça.  Um sopro forte do vento pode amassá-la, sem dó nem piedade.)

terça-feira, 28 de junho de 2016

salvamentos III

Escrevo parágrafos inteiros com os meus gestos. Sento-me e levanto-me duzentas vezes seguidas, percorro a sala de espera, entro e saio do gabinete, passo na máquina do café e resisto a um capuccino com cacau. Saio para a rua e fumo um cigarro que me dá um sabor a menta adocicado, ao mesmo tempo que engulo uns goles de chá de camomila deslavado, guardado numa garrafa da tupperware azul. Comprei-a outro dia, e entretanto avisaram-me que a água saberia sempre a plástico forte, decidi por isso guardá-la para o chá. Do sítio onde me encontro vejo quem chega, alcanço o cavalo que pasta ao lado, sinto o fresco da tarde e engulo bafos de fumo cinzento, que me turvam os olhos fixos no horizonte. Há uns dias, muito poucos, levaram-me a expressão dos dois. Primeiro foi a do direito, é o meu melhor aliado, o que não necessita de graduação, o que lê tudo em primeira instância, o que acorda mais cedo, pela manhã. O esquerdo seguiu-se numa rapidez lancinante, nem me deu tempo de o fechar, cerrou-se num instante assassino, trás, ouvi eu, e nesse preciso minuto o mundo deixou de os encontrar. Cumprem por ora somente a sua mais nobre função. Servem para que não tropece no degrau, não engula uma espinha, não entorne um copo, não ande em contra-mão. Bebo mais uns goles de chá e volto para dentro, à minha espera tenho um livro, "Levem-me para casa". Coloco os óculos, leio uma meia dúzia de palavras mal sublinhadas por mim, e transcrevo-as com vagar, sem alma e sem convicção. Por momentos, posso jurar-vos, sei de fonte segura que o livro me leu, sem a minha autorização.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

salvamentos II

Despi-me muito cedo e escutei a noite, mais nua do que o desejo. Cheirei-lhe todos os segundos, provei o sabor de todos os animais nocturnos, deitei-me à sombra de uma árvore morta e adormeci. Despertei muito cedo, antes do raiar da aurora, e fui-me embora. Fugi com medo da claridade, não fosse a maldita entrar-me pelos olhos adentro e alojar-se num sítio onde nunca mais a encontraria, seria o fim. Regressei a casa mais depressa do que a velocidade da luz, entrei de mansinho, não podia acordar ninguém, vesti-me a preceito e fui trabalhar. Não me lembro de todos os pormenores, mas sinto o peso de todos eles no meu corpo, em cada bocado de pele, que arde até ao infinito da dor. Tenho nos ombros o peso do cansaço, que me verga o nariz até ao chão, mesmo tendo fugido ao que a madrugada me ensinava, bem cedo. Largo a mala envernizada, linda de morrer, pode ser que o peso da maquilhagem e da agenda me alivie os anos, me solte o sorriso, me combata a desgraça. Tiro o casaco dos ombros, na vã esperança de que o fresco matutino me arrefeça o corpo. Descalço-me, ali que ninguém me vê, expectante de que as sandálias de salto me deixem tocar no chão que piso e me dêem sossego. Retiro os anéis dos dedos, os colares do pescoço, o relógio do pulso, e sinto-me cada vez mais pesada. Não sei o que dispa mais para aliviar o cansaço, e por isso fecho os olhos à espera que ninguém me descubra. Permaneci ali várias horas, no meio das pessoas e da correria, descalça, sozinha, sem nada que me assinalasse a vergonha. Precisava de não ser vista. Só a sensação de inexistência pode salvar uma alma aflita. Só o vazio nos pode dar sossego, na evidência da loucura. Só a solidão nos encontra, quando não sabemos de nós.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

qualquer coisa parecida com férias.


salvamentos

Hoje escutei o relato de um bombeiro de profissão, que diz levar a vida numa boa. Já fez partos sem meios, já salvou gente da morte, já cortou cordas de enforcamento, de quase enforcamento, de enforcamento feito há dias sem fim, consumado, definitivo, escolhido ou enganado. Já retirou cadáveres de poços, de lagos, de rios, de tanques, já agarrou cabeças separadas do corpo, já levou membros para o hospital, devidamente acondicionados segundo o protocolo, já encontrou gente a morar em canis. Lá mais para o fim do discurso diz-me que não escolheu ser bombeiro, foi destacado de um concurso da autarquia, havia concorrido a motorista, mas foi desviado. A vida por vezes obriga-nos a escolhas diferentes do que tínhamos planeado. Querer conduzir um camião de mercadorias e ser colocado a livrar vidas da morte e mortes da vida, é com certeza uma inclinação atroz. Deve ser quase tão difícil quanto escolher uma profissão onde pensamos que poderemos salvar o mundo, mas afinal perceber que a única tarefa possível, é tentar salvar-nos a nós. 

domingo, 19 de junho de 2016

ai, meninas

Ai, meninas, de vez em quando até perdem a graça. Seria muito mais bonito viverem do que imaginarem a vida vivida na vida dos outros. Bem sei, é um engodo que não se escolhe nem se decide, sente-se, e na hora h já estão a imaginar o que seria estar com ele na mesma cama, o minuto m em que entraria pelo vosso corpo sem pedir licença, o instante i em que as levaria da terra aos céus, num segundo s de um delírio inconsequente. Bem sei, os olhos dele chamam mais do que uma voz grossa de rouquidão sexy, penetram no vosso imaginário como quem enfia uma língua numa boca tão familiar, quase parece que miram de perto o vosso corpo, por dentro, por fora, de frente, de lado, por trás, pela frente. Sim, estou consciente de que a barba que lhe percorre a cara vos pica mesmo ao longe, basta que exista, nem que seja à distância de uma fotografia tirada à socapa, por uma máquina qualquer. O delírio de vocês nos braços dele é mentira minhas queridas, é todo ele uma grande mentira. O que vos acontece é fenómeno puro da vossa imaginação, um território perigoso e falso, nos momentos que se confundem desde a alma até ao sangue, que acaba a pulsar mais depressa do que o explodir de uma bomba atómica, numa Hiroshima ai tão perto. Aviso-vos, parem com isso, não é por mim, é por vós. Qualquer dia esvaem-se em pormenores construídos no mais puro dos desejos, impossível de concretizar nos dias da vossa existência. E deixam a juventude morrer enquanto o senhor dos olhos verdes olha de frente para uma outra mulher, e lhe faz tudo o que nem sequer povoa a mais recôndita das vossas vontades, a mais ousada das vossas práticas, a mais impossível de todas as safadezas, enquanto lhe diz ao ouvido que a ama. E ama, que é o mais tramado disto tudo. Façam-se à vida, andem, passeiem muito que a morte é certa, e a imaginação tem toda a graça quando se pode concretizar. Vão por mim, que sei o que digo: a imaginação é a melhor coisa do mundo, quando se pode concretizar.

domingo, 12 de junho de 2016

cheiro

São as raízes mortas que me seguram de pé quando estou quase a cair. São elas que me agarram com as mãos de ossos, e especialmente com o cheiro que nunca me esqueço. Lembro-me do cheiro dos meus mortos como se os tivesse acabado de cheirar agora. O do meu avô, sempre avinhado, constante e mais forte do que o vento da nortada. O da minha avó, uma mistura de laca, perfume francês e pele, e o da minha outra avó, a mais delicada de todos eles, que cheirava a creme Stendhal. Sempre fresca, sempre límpida, sempre clara e translúcida, mesmo quando minutos antes de morrer me pediu para que lhe colocasse o vestido de noiva por baixo do corpo, e um blush nas maçãs do rosto. E flores por cima, muitas flores. Nunca me esqueço destes cheiros que o meu corpo entranhou, e é sempre a eles que me socorro quando o o tempo abana, e no fundo não há chão. O abanão ganha um odor que acalma, num sítio onde só chego quando me consigo lembrar que na raiz do meu ser estão todos eles, a correr no meu sangue e em mim. O que consigo sentir em maior intensidade é o do meu avô materno, o espírito revoltado da família. Não que tivesse um lugar diferente dos outros, mas porque o cheiro do vinho é mais forte, guarda-se melhor. O da delicadeza fica mortiço com o tempo, tem tendência a perder a consistência e a desvanecer. É preciso mais força para conseguir cheirá-lo.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

(...)

Poucas são as vezes em que eu tenha perdido as palavras. Acontece-me quando a tristeza se desmancha à minha frente, se mostra e se assume, quando sei que nada poderá ser melhor do que o respeito do silêncio. Acontece-me ainda uma ou outra vez no espanto, quando o susto me engole todas as palavras que eu possa vir a dizer, fico completamente muda. Normalmente sobram-me na desgraça, na alegria e na zanga, no nascimento e na morte, nunca me faltaram na urgência da necessidade alheia, real ou simbólica, na dúvida ou na culpa de alguém que não eu. As vezes em que mais falho, concluo, é comigo própria, na concepção interna do meu ser. É lá, dentro de mim mesma, que por vezes não encontro palavras satisfatórias que me definam com um golpe de mestre o que me acontece. O que sentimos pode não caber nas palavras, digo tantas vezes a gente demais. Cabe no corpo, cabe nas mãos, cabe no sonho, cabe na esperança, mas não se define em caracteres que não dominam senão uma pequena parte do que existe realmente. Se eu pudesse inventava novas falas de expressão. Se eu tivesse o direito a isso, encaixaria no dicionário meia dúzia de palavras novas, que chegariam em meu socorro tal e qual hoje apareceram meia dúzia de transeuntes, num momento de aflição: estamos aqui, se precisar de ajuda, diriam. Essas palavras serviriam para que eu me aconchegasse nelas quando não sei o que sentir. Estamos aqui, se precisar de ajuda, repetiriam até à exaustão, até que eu olhasse para elas e as gritasse ao mundo, enorme, gigante. 

De nada nos vale o poder do grito. Não se não soubermos o que gritar.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

dia da criança

O dia era das crianças e resolvi por isso ir comer um gelado. Estavam dezenas de crianças no parque a andar de baloiço, a subir ao escorrega, a rodopiar na roda, a pedalar nos triciclos de dois ou de quatro lugares. Sentei-me numa sombra a saborear os escassos dez minutos de que dispunha para apreciar a vida ao entardecer, e fiquei estupefacta com o tempo que ainda me sobrou. Senti que dormi um sono, foi como se todo aquele tempo minúsculo, entre uma obrigação e a outra, me tivesse fornecido uma noite inteira de descanso. Atravessei a estrada e regressei muito depressa ao local de origem. Não me lembro do tempo que passei no caminho, sei só que cruzei uma criança com uma camisola alusiva ao dia, dizia: somos o melhor do mundo. Na salinha esperava-me uma outra realidade, triste, já coxa e entorpecida, que me confessou que desde o acidente não vê vida à frente, que está sem forças, acabado, envelhecido, uma tristeza que só visto. Perguntei para mim mesma o porquê de termos de ser velhos depois de podermos ter sido novos. Uma pergunta totalmente infortunada, sei disso, mas bem vistas as coisas gostaria muito de saber uma resposta que me levasse além do é a vida. E muito mais além do tudo tem um começo e um fim.

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