terça-feira, 28 de junho de 2016

salvamentos III

Escrevo parágrafos inteiros com os meus gestos. Sento-me e levanto-me duzentas vezes seguidas, percorro a sala de espera, entro e saio do gabinete, passo na máquina do café e resisto a um capuccino com cacau. Saio para a rua e fumo um cigarro que me dá um sabor a menta adocicado, ao mesmo tempo que engulo uns goles de chá de camomila deslavado, guardado numa garrafa da tupperware azul. Comprei-a outro dia, e entretanto avisaram-me que a água saberia sempre a plástico forte, decidi por isso guardá-la para o chá. Do sítio onde me encontro vejo quem chega, alcanço o cavalo que pasta ao lado, sinto o fresco da tarde e engulo bafos de fumo cinzento, que me turvam os olhos fixos no horizonte. Há uns dias, muito poucos, levaram-me a expressão dos dois. Primeiro foi a do direito, é o meu melhor aliado, o que não necessita de graduação, o que lê tudo em primeira instância, o que acorda mais cedo, pela manhã. O esquerdo seguiu-se numa rapidez lancinante, nem me deu tempo de o fechar, cerrou-se num instante assassino, trás, ouvi eu, e nesse preciso minuto o mundo deixou de os encontrar. Cumprem por ora somente a sua mais nobre função. Servem para que não tropece no degrau, não engula uma espinha, não entorne um copo, não ande em contra-mão. Bebo mais uns goles de chá e volto para dentro, à minha espera tenho um livro, "Levem-me para casa". Coloco os óculos, leio uma meia dúzia de palavras mal sublinhadas por mim, e transcrevo-as com vagar, sem alma e sem convicção. Por momentos, posso jurar-vos, sei de fonte segura que o livro me leu, sem a minha autorização.

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