Olho demoradamente para o horizonte azul celeste, mas depressa me fixo nos rapazitos que apanham carreirinhas ao entardecer. A água é das que arrefece só os grandes, porque na verdade se entranha nos anos que passam, enquanto que nos mais novos escorre pela pele, tal e qual como a vida que passa e não pesa. Olho fixamente para a liberdade em movimento e penso na imperfeição da natureza. Dizem os entendidos que aprendemos com o tempo e com os livros. Dizem os livros que a experiência torna a existência mais fácil, mais eficaz, mais objectiva e significativamente mais direccionada. Diz a experiência que os velhos são donos de um lugar de sabedores, têm paciência, sabem esperar, conseguem o calo dos trambolhões dados fora de horas, quando não se estava preparado para os receber, nunca na vida queremos ir ao asfalto. Quanto a mim, não há erro maior. São os pequenos, detentores da espontaneidade e da ignorância, os mais sabedores disto tudo. São eles que não sentem o frio da água, o medo da alegria, o crivo da discórdia, e são eles que gritam genuinamente quanto vem lá mais uma, prestes a rebentar e a transportá-los até à areia, o único destino possível antes do cansaço. Eles não sabem, mas roubei-lhes energia até ao tutano dos ossos. Rapei inúmeras gargalhadas, engoli todos os gritos, usurpei a velocidade furiosa nas carreiras e juro-vos, provei o gosto do sal, à distância de muitos anos passados a olhar para aquele mar. Não há voo mais alto do que o da crista de uma onda, tenho a dizer. Pertence à criançada, dezenas delas, em fila, a correrem depressa para a areia da praia, para segundos depois começarem tudo de novo, à espera de uma onda maior. Só pode ser ali que se aprende a sonhar.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
segunda-feira, 25 de julho de 2016
sexta-feira, 15 de julho de 2016
quinta-feira, 14 de julho de 2016
verão
Costumo fartar-me do Verão com a mesma rapidez com que engulo uma cerveja gelada quando o calor aperta. Sinto pouca simpatia por dias de sol aberto e quarenta e picos, tenho muito mais predilecção pelos de Primavera que entretanto tendem a desaparecer, as tardes frescas, as brisas ligeiras, os vinte e poucos, parece que algum diabo engoliu tudo isto e nos deixou entregues ao rigor do frio e do calor. Já as noites mornas são sempre bem vindas. Há esplanadas que nos devolvem alguns anos de vida, quer seja na beira de um mar, perto de um rio, com vista para um regueiro de salmoura, ou no meio de um jardim batido pela noite. Normalmente neste altura do ano começo a penar pelo Outono. Já estou ligeiramente farta de dias longos e de gente demasiado grande, que faz vida da vida alheia, sem perceber que está a ocupar muitíssimo espaço. No Inverno, tudo isto se recata. As pessoas recolhem cedo, faz-se noite antes das seis. Escondem-se em sobretudos compridos, espreitam pela nesga do cachecol e do carapuço, bebem chás calmantes de camomila e andam depressa porque a chuva atiça os passos e não deixa margem para grandes divagações. Até porque a escuridão é inimiga das conversas de vizinhança, das que não interessam nem ao menino Jesus. A miudagem entra cedo na escola, são precisos jantares, banhos e outros trabalhos, roupas para o dia seguinte, mochilas e sacos de treino. Deitar antes das dez para que tudo durma cedo, quem sabe à quarta feira se distraia um pouco o corpo, é meio da semana, há perdão, mesmo que no dia seguinte custe ligeiramente a levantar. O excessivo ócio parece-me um verdadeiro inimigo da grande maioria do povo. Para ser salutar é preciso que primeiro o corpo se canse, caso contrário entra directo no estômago e liberta indecências, impropérios, invejas e maledicências, mal estares vários e palpitações de espírito, impossíveis de sossegar. Prefiro o Inverno, desde sempre. Vivia nele todos os dias do ano, intercalado com meia dúzia de dias amenos, lá pelo meio, só para que as línguas não morressem presas, e para poder vestir uns belos vestidos de verão. E libertar as pernas, claro, que quanto a mim é muito mais saudável do que soltar a língua sem moderação.
quinta-feira, 7 de julho de 2016
Ó que porra: tenham calma.
Tenho um certo patriotismo que me faz vibrar muito mais com a selecção do que com o Benfica. São-me quase indiferentes as guerras clubísticas entre o norte e o sul, entre Alvalade e Luz, e não há vez nenhuma que eu roa as minhas preciosas unhas, suba as paredes, respire com mais força ou me sente e levante cem vezes no decorrer de um jogo. Prefiro a paz do sossego no sofá, do encosto da almofada, do sono meigo do cão. Vejo poucos jogos, de resto. Contento-me com um ou outro derby, petisco uns camarões e uns tremoços, faço pirraça com o meu filho e o meu pai, lagartos desde a ponta dos pés ao fio dos cabelos, e faço o meu afilhado saltar pelo meu clube em troca de um kinder ou de um chupa-chups, uma chantagem inofensiva que só vem adensar a grandeza da águia, mais do que reconhecida pelo público em geral. Mas depois passa tudo. Arruma-se a barraca e nunca mais me lembro daqueles onze, dos quais não sei o nome, a função, a vida ou a posição. Não faço a mais pequena ideia de quem os treina, quem preside ou quem decide, quem arbitra ou quem fiscaliza as linhas, qual o canal de programação que se dedica à transmissão dos jogos. É um ar que se lhe dá, quer ganhe, quer perca, quer empate ou quer nem chegue a jogar. Não interesso como adepta a clube algum, confesso, jamais pagaria cotas, nunca na vida teria um lugar cativo, tanto entro num estádio da Luz como num de Alvalade, no de Freixo de Espada à Cinta, ou no Vila Nova de Famalicão. Mas a selecção é outra loiça muito mais delicada. É outra praia, outra realidade, e aprecio pouco a típica defesa Portuguesa para lidar com a emoção: vamos perder, já deveríamos ter perdido, o Ronaldo não é tão bom como se julga, o treinador anda adormecido. Caneco, deixem jogar quem joga. Lidar com a expectativa faz parte da competição, e não deveria ser necessário este súbito zelo de protecção. Desporto é isto, e já estamos na final. Domingo poderemos ou não ser campeões, mas seremos grandes de qualquer maneira. Somos uma nação, pessoas, parem de dizer mal de quem nos representa até à exaustão do cansaço, dos banhos de suor, da dedicação e da pressão, quer gostem, quer não gostem, quer tenham medo ou ganas de ganhar. Ó que porra: tenham calma, respirem fundo e aproveitem o momento. Se não chegarmos lá com eles, sem eles também não chegaríamos. Orgulho, é palavra de ordem.
terça-feira, 5 de julho de 2016
:(
O humor negro é coisa para ser utilizada com parcimónia. Fica muito interessante no meio da intelectualidade, pode surtir algum efeito em contextos específicos da trivialidade, pode parecer eloquente, inteligente, mas deve ser utilizado com muita calma no meio das massas sociais. Atingir de forma bruta pessoas, com aspectos negativos de histórias de vida diversas, é perigoso e vulgar. Passa automaticamente de humor corrosivo, negro ou pintado às bolinhas, para falta de gosto, desrespeito e violência. Gozem com a bolinha de Berlim com creme que lambuza o verão. Com as senhoras que se abanam na corridinha da praia ao entardecer, ou com os senhores que fingem ler o jornal, pela centésima vez naquele dia, enquanto elas passam. Também podem escrever sobre as gaivotas que fogem da tempestade e tropeçam nos chapéus de praia, ou sobre os grupos que zumbam ao por do sol, com a música em altos berros, enquanto a praia debanda. Mas não façam isto. Isto, não.
sábado, 2 de julho de 2016
corram, meninos, corram
Pela vidraça da colina espreito uns garotos que correm sem rumo e galhofam muito alto. Um casal acusa-os de ruído, ao mesmo tempo que comem uns pastéis de nata e discutem a mocidade, já nada é como era, afirmam. Os jovens não têm educação, as crianças não obedecem aos pais e aos professores, o país está em vias de exaustão, qualquer dia não aguenta esta canalha e desfaz-se redondo no meio do chão. O que o segura são as pessoas mais velhas, que muito em breve morrerão. Fico a olhá-los e sinto-os muito mais ruidosos do que os miúdos que passam a correr e a saltar. Estão sentados a fazer um barulho ensurdecedor, basta que mexam os lábios, que mordam o pastel com a boca muito aberta, que olhem de cima com ar de pompa e reprovação. Faz-me doer a vista quem se sente no direito de praguejar sobre a alegria, difícil de recuperar anos mais tarde. Dá ideia que os desassossega quem ainda consegue ser só porque lhe apetece, quem corre por gosto, quem salta por nada, quem canta sem voz, mas com ganas indomáveis de vontade. Tenho para mim que o mundo seria muito mais feliz se as crianças mandassem mais. Num mundo orientado por quem grita quando quer gritar, por quem ama quando quer amar, por quem chora quando quer chorar, e por quem ri quando quer sorrir, seríamos todos muito mais satisfeitos. Assim somos uma carneirada critica de olhos em tala, que abafa a tristeza e a alegria, que normaliza a igualdade, que desaprova a individualidade, e que mata a personalidade mágica e interventiva de cada criança endiabrada. Somos quase todos mais do mesmo; pães de sal mediano, tamanho racionado, sem gosto expressivo, secos como um carapau. Os excessivos em fartura ou em falta são defeituosos, retirados da linha de produção, pelo sim, pelo não. O pacote visto de fora parece perfeito, sem côdea, já fatiado, sem custos adicionados. Sem doce, sem manteiga primor ou queijo dos Açores, sem chouriço ou salpicão. Nada disto condiz com a minha natureza, tipicamente portuguesa, de gema, alma e coração.
sexta-feira, 1 de julho de 2016
vestido branco
Comprei um vestido muito branco, com uma rendinha em baixo. Costumo vesti-lo com muita cautela, não vá o meu corpo ter algum espinho que o atravesse e lhe roube a beleza, ficaria com um rasgão de alto a baixo. Quando o visto sinto-me uma espécie rara de ar muito angélico, adornada por uns caracóis teimosos que insistem em atravessar o meu caminho, por muito que os anos percorram e me desmanchem aos bocadinhos; mãos, pernas, coxas e pés, tudo se desmorona menos eles, talvez por teimosia, sabem bem que os detesto até ao fundo de mim, que os cortaria pela raiz, que os mataria de uma penada. O meu vestido branco, por sua vez, nunca me deixa ficar mal, consegue a proeza de me fazer acreditar que o imaginário é tão eterno quanto possível, por muito que o tempo se cruze, no passado, no presente, no futuro, na alegria e na tristeza, na graça e na desgraça. O simples vestido preto, não comprometeu nunca a grande Ivone. O branco imaculado comprometeu-se comigo. E eu não posso deixá-lo ficar mal.
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