Dizem por aí que ao fim de tantos anos eu já deveria compreender tudo, analisar quem passa a olho nu, permitir os insurgentes, a bem da verdade aceitar o mundo tal e qual ele é, ajustar positivamente o possível, compreender a apaziguar as tentativas mais ofensivas que me dirijam, enfim, devo à minha profissão a tolerância. Olho para todos os que assim sentem e sorrio, ora em sorriso aberto ora disfarçado, depende do interlocutor e do meu humor de momento. Hoje, passados alguns anos e muitas histórias, o que menos me apetece nas horas vagas, quando olho o mundo em geral, é analisá-lo, compreendê-lo, aceitá-lo ou perdoá-lo. Nas horas vagas preciso essencialmente de mim e de alguns dos meus, que podem ser pessoas, animais, livros ou lugares. Preciso de me esconder uns momentos das outras pessoas, necessito de me livrar dos anseios, das fúrias, das ansiedades e das derrotas. Quando olho para um casal, nunca lhe procuro infidelidades, pontos comuns ou dispares, cumplicidades ou divergências. Quando olho para uma família não lhe analiso a mecânica, não lhe procuro passos em falso, não lhe pesco gestos atribulados. Quando olho para um jovem não lhe capto a natureza, defensiva ou ofensiva, há-se ser uma, há-de ser a outra, eventualmente em dias alternados. Quando me deparo com todos eles vejo só pessoas, incluídas na paisagem, e passado um minuto já me esqueci delas, já se perderam juntamente com uma oliveira ou uma porta pintada, da qual nunca mais na vida lembrarei o número. Isto é muito facilmente justificável, o meu único descanso é vazar o meu corpo dos sentires alheios, é eventualmente tentar entrar mais fundo nos meus, deixando de lado todas as outras dores e todos os outros medos. Ninguém me perdoa esta minha vertente mais egoísta, já o percebi há muito tempo, principalmente a meia dúzia que espera de mim algo próximo da perfeição, no que toca à disponibilidade para cada qual, devo sempre uma atenção a quem está perto de mim. Não me incomoda, deixou de me incomodar esta divida permanente. Hoje consegui o milagre de considerar-me quando todos esperam de mim o inverso, não sendo fácil, nada fácil, entrar em choque frontal com a sociedade que institui. Demorou anos, décadas, uma vida, uma história. Como qualquer grandiosidade demora, não há cá grandes conquistas feitas numa hora de almoço, entre um bitoque e um café.
O nadador (ou o maratonista, o princípio é universal, seja na água ou na terra) mais eficaz é o que melhor sabe dosear a energia, tornar-se invisível face ao meio onde nada, ou corre. O melhor nadador é o que flui na água como se não a perturbasse. O corredor, o que minimiza a perturbação do ar. Em ambos os casos, não desperdiçam esforços com o atrito. Só doseando a energia, a força vital, chegam ao fim, à meta. Mas aprender isto, é o trabalho de uma vida.
ResponderEliminarVotos de uma Boa Páscoa.
Um vida inteira. Eu digo que já lá estou, mas obviamente que exagero...
EliminarMuito obrigada. Igualmente para si.
Compreendo tão bem o que diz. Por exemplo, só atendo o telefone quando me apetece, excepção aos muito próximos. Sei que é egoísta mas esse egoísmo é fundamental para mim agora.
ResponderEliminar~CC~
O egoísmo é um conceito que presentemente analiso. Nem sempre quando parece, é...
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