sexta-feira, 29 de novembro de 2013

animais

O Parafuso é o cão que não é meu, mas que me beija todos os dias ao de leve. Saltita à volta do carro quando me vê aparecer e lambe-me as mãos a uma distância de segurança que a vida já lhe ensinou, não vá o diabo tecê-las ( há quem diga que o diabo aparece onde menos se espera). O cão da família abana o rabo insistentemente, basta que eu estacione em frente à casa. Rebola-se no chão quando apareço e nunca se esquece de me cumprimentar. Não me diz adeus, fica deitado enquanto saio, a olhar-me com paciência (sabe lá ele quando vou voltar). Nenhum deles me pertence directamente, mas ambos são meus. Nunca fui de trocar pessoas por animais. Não aprecio excessos radicais de fundamentalismos, sequer. Mas entendo, juro que entendo, o apego nos afectos sentido por muita gente: não falham, dão muito mais do que o que pedem, não atacam, têm tempo e disponibilidade. Tudo o que ser humano não é.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

prioridades

Enervo-me comigo mesma quando deixo a vida inverter-me prioridades. Bem sei que não posso deixar de tentar ser feliz porque morrem crianças vítimas de tortura, mas posso bem tentar reorganizar o valor das acções onde me centro de forma mais consciente. A inconsciência é um sítio onde entramos quando permitimos a invasão de um qualquer adulterador de um estado de sanidade digno de referência. O egoísmo pode ser um deles, mas há muitos. Tantos, nunca mais acabam. Depois também há isto. E há ainda uma cena de pancadaria à qual eu assisti em directo da janela da minha casa, com gritos e ofensas dirigidas. E murros e pontapés, e mulheres aos gritos. E degradação. Não gosto de violência, nunca gostei. Consigo destilá-la em situações específicas, muito embora me sinta sempre ofendida na minha integridade. Quando extrapola para a lei do mais fraco, perco as forças. Fico com uma indisposição nauseada que afecta o meu estado físico e o meu estado mental, talvez  porque a inclua numa questão gratuita, sem precedentes. Uma criança é um ser indefeso, aqui, na Síria, na China e na lua, e quem atenta sobre ela é uma pessoa má. É por isso que eu acho tão importante dotar quem cresce de prioridades. Mesmo que elas se invertam vida afora, invertem sempre, mas pode ser que se invertam menos um bocadinho. Não há magias, actos alargados que movam montanhas, caminhos potenciadores de acabar com o mal do mundo, eu pelo menos não conheço. Mas há a acção pequenina da porta para dentro, que pode fazer com que a importância do respeito reapareça nos lugares de quase morte. Não roubarás, não matarás, honrarás o teu pai e a tua mãe, não cobiçarás os bens do próximo, parecem ditos antigos de obstinação bíblica, mas a verdade é que são condutas de acção urgentes para que o mundo se reorganize outra vez. Se é que isso existe, se é que alguma vez houve, se é que pode haver. Não percebo, honestamente não percebo a nossa incapacidade de foco no essencial. Um certo desfalecimento da coerência perante a veleidade caprichosa, que só reaparece quando a vida resolve colocar à prova a nossa existência. Nessa altura somos todos conformidade, todos consciência, muito embora com efectiva possibilidade de novo desmaio significativo. Nunca aprendemos, a não ser a fazer contas de matemática, a saber o nome dos rios e dos mares, a conhecer a gramática portuguesa, entre outras questões culturais de segunda necessidade. Também sei que a proximidade com a violência nos tira a capacidade de raciocínio. Perdemos a definição e entramos em choque entre a justiça o resto. Que fazer para acabar com ela, senão usá-la no seguimento? Mais ou menos o mesmo que se usa na educação dita normal: a criança levanta a mão e leva uma palmada. Aprende a autoridade, ou seja, percebe claramente quem nada mais. Mas percebe ainda que quando crescer, também pode bater. Daí à violência e ao abuso vai uma enormidade, pois claro, e antes que se insurjam as vozes pedagógicas anti psicologia da educação. Ou pode até nem ir, depende. Fazer coisas que contrariem actos de prepotência é que faz muita falta. Aos nossos filhos, ao nosso País, ao mundo no geral. Tudo vale para um recomeço. Matar mulheres aqui ao lado e crianças na Síria, é que não. Isso, jamais poderá valer.

domingo, 24 de novembro de 2013

temporal


( Embala-me a música que escuto em baixo som, quase imperceptível aos ouvidos. Assim decifro devagar notas musicais de primeira categoria. Não se deve apreciar qualidade em decibéis exagerados, tal como não se deve degustar acepipes em garfadas apressadas. Perde-se o som, perde-se o gosto. E por aí afora.)

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

gata que é gata, lê o jornal

A senhora que me agarra as compras do tapete está pelos cabelos com tanta gentinha. É Domingo, dia do descanso, mas não há outra coisa que se faça que não ir às compras a um local apinhado de gente? Não me pergunta com a boca, fá-lo com os olhos, é a mesmíssima coisa. Comida de gata, areia de gata, iogurtes naturais, pastilhas da máquina da loiça, aguenta tudo até ao saco do jornal. Não encontra o código de barras, separa um a um, saca de um complemento que não diz coisa nenhuma, eu vou olhando até que vocifero com calma, - olhe, está no principal. Não sei se a ajudei se a atrapalhei, sei que perante a minha humilde observação responde irada que não sabe quem leia um saco de jornais. Sorri para dentro e disse-lhe tranquila, - eu não sou, que não tenho tempo. Mas lá em casa, e como já deve ter percebido, há uma gata desocupada. Tenho de lhe dar que fazer. 

O meu bom humor ainda me salva do mundo de vez em quando, merece um bem haja. Ela trabalha ao Domingo e eu, muitas vezes, também. Estou do lado dela, estarei sempre do lado dela, estou do lado de toda a gente cansada até à altura da inconveniência. Depois disso dou um ar da minha graça e posso até criar gatos que lêem, cães que dançam ou peixes que falam, há de tudo cá em casa. Má educação, é que não.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

descobertas

Descobri há pouco tempo o porquê dos mortos serem santos, numa descoberta que nem sei porque tanto tardou. Houve tempos em que considerei a compaixão pelo desaparecimento com a eventual consciência da falta, muito embora, confesse, não me parecia suficiente. É um dado adquirido, todos sabemos, a morte santifica as gentes. E eis que por portas travessas percebi porquê, alvíssaras, necessitava mesmo de um decreto que me regulamentasse com sentido a beatificação dos detestáveis: os mortos são santos porque partiram para o desconhecido. Deixaram de se movimentar em terreno visível, passaram a ocupar a mística celeste, certamente ganharam poderes. A inimizade visível pode ser detestável, mas a invisível torna-se assustadora, logo, muito mais perigosa. E nós preferimos viver sem sustos, claro, nem que seja a idolatrar solenemente quem outrora desdenhávamos. Olarila.

(Bem vistas as coisas, não há assim tanto morto santo, há é muita gente amedrontada. No fundo eu sabia, eu sabia que o perdão é limitado, que o além assusta sempre, e que gente é sempre gente.)    

terça-feira, 12 de novembro de 2013

a louca

A louca subia a ladeira a empurrar o carrinho de mão. Um xaile apertado ao peito, um lenço apertado ao pescoço, uma vida apertada à loucura. Sempre simpatizei com ela. Mais do que a mitologia explica-me as insolências das almas, os descaros dos espíritos, as imprudências dos corpos, os desfasamentos do mundo. Só os fracos precisam dela, admito: um norte onde cabe o inexplicável, o indizível, o improvável. 

(Os fortes admitem tudo dentro de uma certa normalidade.) 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

informação

A blogosfera é um mundo vastíssimo de pontos de vista. Utilizo-a há já alguns anos como meio de expressão e de leitura, em diversos domínios. Sou ecléctica, eventualmente por natureza e vocação. Perco-me em meandros políticos ( não muito), deito um olho à moda, como qualquer mulher que se preze, aprecio os informativos e noticiosos, mas são os blogues reflexivos e profundamente pessoais que me prendem realmente. Desses, há um que me cativou há muito, e que reúne num único local texto e fotografia de elevadíssima qualidade. Por simpatia ou por gosto, quiçá também por partilha de pontos de vista, o seu autor resolveu presentear-me com um convite de colaboração que me deixa verdadeiramente lisonjeada, e ao qual não havia recusa possível de considerar. É portanto com muita satisfação que informo os meus caríssimos leitores, que a partir de Domingo, dia 10, podem ler-me também no Assim na Terra como no Céu.
E, Paulo, last but not least, prometo tentar estar à altura do desafio ( ou quase, vá.). :) 

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

absurdos

Depois da crucificação de Margarida Rebelo Pinto em praça pública, posso deixar umas notas soltas sobre o assunto. Não gosto dela enquanto escritora, mas já a li. Só por isso sei que não gosto mesmo, não trata mera recusa por loiras elegantes que escrevem romances de amor e prozac, nem sequer uma antipatia generalizada, estilo Valter Hugo Mãe. Não percebi muito bem porque se prestou a fazer comentário público sobre política, mas enquanto cidadã tem todo o direito a fazê-lo, tanto quanto qualquer outro português. A diferença é que ela o fez num programa televisivo. Que o povo esteja farto de política, dos políticos e da crise, eu percebo. Que entenda achincalhar quem nos governa, manifestar o seu desagrado, e fazer esperas encapuçadas ao Senhor Primeiro Ministro, eu também consigo considerar. Mas vetar a oportunidade de manifesto oposto ao da globalidade, parece-me um absurdo. Uma democracia prima pela liberdade, e liberdade é escolha pessoal e única de opinião, postura e manifestação.

(A ridicularização excessiva é ridícula.)   

outono

( Fotografia do Paulo.)

As aranhas eram pretas e espreitavam pelos buracos de tijolo tosco que guardava o tanque. O baloiço ao lado baloiçava enquanto as vigas carunchosas do tempo e da chuva se queixavam ruidosamente, ao mesmo tempos que os nossos pés tocavam o castanheiro em frente. Era Outono, e o meu pai não sabia que eu corria o risco de ser atingida por um conjunto de telhas desgovernadas, os riscos para o meu pai eram todos calculados e rigorosos: os carros, os ciganos, as árvores que eu gostava de subir, os poços, os doces, a doida da velha que morava aos fundos, o porco que grunhia quando morria às mãos de Manel Azinheira, trauma certo para uma pequena que naquela altura ainda só tinha idade para comer as sopas. Também havia o muro demasiado alto que permitia ver a aldeia ao longe. Ninguém subiria aquilo, quanto mais uma menina franzina, quanto mais duas. As mesmas que brincavam horas debaixo de uma mesa a fazer de casa de bonecas, mesmo ao lado da avó e do gato zarolho e coxo, para além de feio. Os ares de anjo governam o mundo, não sei se já tinha dito. Um banco alto, um tijolo por cima, um fim da tarde, um lusco fusco. Ninguém via nada e nós éramos grandes. Tínhamos pena, claro, o que é isso de grandeza sem que ninguém saiba a distância que nos separa do resto? Mas era um segredo só nosso, para poder acontecer.
Também fugia muito para o pé dos ciganos. Eram bonitos, viviam numa tenda, cantavam e dançavam na noite e na lua enquanto eu espreitava; aaai, meus olhos ficaram lá, meus olhos ficaram lá, meus olhos ficaram lá... Não percebia muito bem o que era isso de deixar olhos e vir embora, mas pensava sempre que haveria de existir uma explicação ajuizada. Um dia encontrei-a, muito mais tarde, longe da sensatez que entretanto me morreu de vez num lago onde os sapos coaxavam em coro. Era sensato eu ver de fora, mas a tábua que atravessava o rio até meio chamou-me e eu fui. Claro que não nadava, mas sobrevivi e achei que o juízo em excesso não era chamado para a vida. Foi outro dos perigos identificados para o futuro, a tábua no rio, mas para mim perigosas eram as formigas de asas, as malvadas. Não sei porquê ninguém percebia.
Nesse dia era são Martinho ou coisa que o valha. As castanhas crepitavam num lume aceso na berma da estrada, e havia vinho tinto que eu cheirava do copo do meu pai e do meu avô. - Queres provar?, dizia o avô Manel, sob o olhar aterrado de minha avó. A minha avó era mais de marmelada e bordados a ponto de cruz. Sim, sei tudo, porque é como andar de bicicleta. Claro que ao cair da noite o corvo Jacob me desassossegava em conjunto com as vozes que choram a cantar. Ainda hoje, a poder, escuto-lhes as lamurias internas, ninguém chora como os ciganos quando cantam nas noites de Outono. A velha dos fundos às vezes ralhava. Um dia morreu e ninguém deu por ela senão quando o gato apadrinhou a nossa casa. Tinha fome o traiçoeiro, via-se mesmo que não era cão.
Também aprecio broas da época, não me venham com a história de que a gula não move o mundo. Move, a gula também é um móbil, de gente e de bichos. E o néctar dos deuses pode desembrulhar-nos o estômago e o espírito, sou até capaz de cantar no final do repasto, mas só se houver castanhas, claro. Nunca mais me esqueci da velha, dos ciganos, dos perigos que engoliam gente pequena e da Nádia, que escolheu vivê-los comigo. E sobrevivemos, que nisto tudo já é Outono outra vez.   

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

ninguém disse que era fácil...

Convenhamos, o que é grande custa e dá trabalho. Dá trabalho crescer, caímos no chão diversas vezes porque a cabeça pesa demais e o corpo de menos, e nessa altura ainda nem sabemos o peso interno que ela vai ter um dia mais tarde (muito mais tarde, num tarde que tarda mas que quando chega veio depressa demais; e depois já não recuamos). Dá trabalho escolher os amigos que mais gostamos e penar pelos que queríamos sem que esses nos estejam ao alcance, não lhes apetece, não estão para aí virados, haverá gente rejeitada por nós exactamente com o mesmo tipo de sentimento (faz parte, ninguém avança sem rejeição). Custa estar na escola aos seis quando o corpo quer andar a correr no recreio mais pequeno do que o Deus nos acuda. Aos seis ninguém percebe o porquê das aulas serem muitas e a brincadeira ser muito pouca, só por falta de capacidades técnicas das criancinhas não se invertem as prioridades (há dias em que penso que nós, adultos, deveríamos permitir que se invertessem). Dá trabalho cumprir as regras da sociedade e da educação impelidas por pais, por avós, por professores e outros interveniente, que o que não falta é gente capacitada a moldar pequenos seres que crescem e que devem aprender o que é a vida ( a vida enquanto se cresce não é nada do que os adultos pensam, e ainda bem). Dá trabalho escolher a única profissão que se gosta e deixar para trás todas as que não se gosta, porque para isso é preciso considerar uma aptidão pouco mais do que imaginada e conceptualizada sem o rigor verdadeiro que rege cada uma delas ( quero ser médico porque curo gente, mas ainda ninguém morreu às minhas mãos, quando morrer não sei se ainda vou querer). Custa construir uma família e esperar pelo tempo certo para fazer tudo aquilo que já deveria ter sido feito, porque a nossa vontade na hora do amor é realizar o que o corpo permite sem olhar a critério, não vá o mundo acabar no próximo instante e deixar por conceber a pertinência da maior perfeição que veio ao mundo (e que às vezes passa, o que me leva a questionar a excelência ao limite das minhas forças). Dá trabalho e dói ser mãe, no corpo e na alma, porque a verdade é que esquecemos a prioridade do nosso Eu para construirmos uma outra paralela, muito mais pura, muito mais merecedora, muito mais plena, muito mais vida ( e quem quiser desmentir esta, por favor arranje um bom argumento). Dá trabalho ser mulher, perseguir os sonhos e os objectivos, cumprir connosco e com a sociedade, ao mesmo tempo que nos permitimos uma existência complacente com o nosso ego (agrilhoada ao nosso super ego, abanado pelo sem vergonha do nosso id ). Custa ser feliz. Para que isso aconteça não somos nós,  somos nós e mais alguém, que uma das impossibilidades do Homem é ser feliz sozinho. E para haver a comunhão há um outro conjunto de circunstâncias diversas e também elas trabalhosas, muito mais acres do que o ar fresco e solitário da noite, fazendo-me crer que os caminhos são o que temos sempre de atravessar para alcançar o que buscamos. Todos sabemos, claro, fracas palavras, pura trivialidade, meros desabafos. De resto, nunca ninguém me disse que a vida era fácil. Fui eu que julguei em tempos, ainda em ignorância, e honestamente não sei se queria dar total descrédito ao assunto. 

mapa

O trabalho nasce-me dos dedos apressados que se comprometeram com resultados rápidos. A espera pode magoar o corpo, sei disso. As doces, as amargas, as outras eventualmente toleram-se. Agarro o que me vem à mão, não posso perder-me, é essencial balizar a cordilheira de respostas dadas. Na desarrumação da casa pego ao calhas o mapa vivido. Um mapa vivido não é um objecto indiferenciado. Um mapa vivido é todo ele o cheiro, a cor, o ar, a viagem no conjunto das bolinhas e das linhas traçadas a critério, revividas ao rigor do segundo, na permanente memória. Vou dobrá-lo com cuidado e deixá-lo dormir. Precisarei dele para todo o sempre. 

domingo, 3 de novembro de 2013

I Just Called To Say I Love You


porque acontece?

Percam 15 minutos do vosso domingo a escutar isto. Encontrei-o aqui, e nele encontro alguém que fala com grande lucidez e na primeira pessoas, sobre a questões da violência doméstica. Porque o assunto é sempre da ordem do dia. E porque a consciência dele nem sempre aparece, mesmo em quem acontece.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

(...)

( Fotografia do Paulo)

Por vezes canso-me do politicamente correcto, da aparência cuidada, do traje irrepreensível e do cabelo alinhado. Canso-me das horas que me travam mais do que a saia que visto, das pessoas que me olham com olhos de sociedade, dos familiares que me aguardam com ar de compromisso, dos que se sentam na minha beira à espera de compreensão. As manhãs exigem que as encare com sorrisos, as tardes querem prontidão na indolência da sesta, as noites tardam ou livram-se de mim mais depressa do que as ondas se escapulem do mar, surfadas na ira por um McNamara qualquer, desalinhadas, excessivas, violências sem direcção. Estatelam-se numa areia fininha e sempre igual, uns montinhos, umas pegadas, umas conchas e uns caranguejos, umas direcções trocadas e umas rochas duras, um cheiro a maresia e um frio gelado que de manhã aquece ao sol madrugador, nunca dorme mais do que deve. O cuco espreita para fora do relógio de madeira que não conhece outros compassos, o pássaro canta em harmonia inexplicável, os cães correm atrás dos donos e os gatos atrás do leite, os carros apinham-se  nos cruzamentos onde os semáforos acendem e apagam para que pessoas cruzem a passadeira que as leva ao destino, a bica e a nata, o jornal e o ponto, a secretária e a empreitada até ser noite, poucas pausas, nenhumas emoções, elevado rendimento, rotina q.b. Quando me canso desleixo o propósito e acordo a latência. Descuro a norma e agarro o grito, visto um vestido encarnado a condizer com a boca e com o sangue que me arrasta e circulo pelas avenidas em desalinho acordado, mais rápido do que a minha própria sombra. Subo as calçadas e rumo à torre mais alta, esqueço os ventos e as vigias, afronto os guardas e as armas, as bandeiras e os galões, as poses e as convicções. No final caio sempre desamparada, sem anjos da guarda que se condigam para me alinharem os passos. Não me assusto que não meto medo, sou mais fiel à nobreza da vida do que o meu coração ao meu corpo; só me deixo circular ao semblante da lua, tão ela como ninguém, e acordo quase sempre antes de sair para a rua. Quando isso não acontece, sinto que pouca coisa me passa ao lado.

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