Foi num catorze de Fevereiro de um ano qualquer, teria eu uns doze anos. A escola criou uma caixa para escrever cartas de amor, e para a minha turma vieram umas sete, talvez umas oito, todas elas para raparigas: duas para a loira, as restantes para mim. Na hora não apreciei nada daquilo, senti tudo como uma estalada na cara, talvez do imprevisto, talvez dos sorrisos malandros da turma, talvez dos olhares de reprovação das outras, mas que diabo seria aquilo? A professora de português entregou-me o monte e ficou à espera, esquecendo-se apenas quando percebeu que eu não fazia ideia alguma de partilhar os versos apaixonados com tantos ouvidos, curiosos e indignados. A pouco e pouco, ao longo da aula, fui discretamente abrindo cada uma. Entre umas brincadeiras, umas seriedades, umas loucuras e outras tantas leviandades, debrucei-me sobre uma delas, que com alguma sabedoria se iniciava assim: "Oi, moreninha...". Ainda mal tinha sorvido estas palavras, e já a professora me espreitava por trás do ombro, enquanto me dizia: "descobre de quem é essa... começou tããão bem..." Não vem ao caso se descobri ou não, sequer as intenções de quem a escreveu. Vem ao caso que nesse dia, precocemente e sem querer, percebi algumas coisas de utilidade duvidosa: não há mulher nenhuma que não se encolha diante de determinadas palavras, nem mesmo as que fingem ser duras ou donas de si; os homens nem sempre preferem as loiras e as próprias sabem bem disso, muito embora tentem à exaustão do cansaço manterem-se iguais por toda uma vida, uma tremenda seca, julgo eu; todos eles sabem muito bem o que dizer quando querem ser bem recebidos, talvez porque nos conheçam muito melhor do que nós próprias, é um facto; oi, morenhinha, ficou-me como um bom começo de algo que nem chegou a começar. Mas que não deixou por isso, de ser um bom começo.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quarta-feira, 27 de abril de 2016
quinta-feira, 21 de abril de 2016
gett off
(Foi um dos artistas da minha vida, e esta foi uma das músicas da minha adolescência. Prince era pequeno e o maior dos artistas. Não, não era das botas. Era do talento e da excentricidade.)
quarta-feira, 20 de abril de 2016
um lugar cómico
Temos a mania, profundamente humana, de adivinhar o que o outro sente, o que pode precisar, o que gosta ou imagina. Eu incluída, claro, fui até treinada para o fazer com alguma ciência, nos bancos da faculdade. Os livros de hoje já arriscam alguma evolução. Já nos avisam que não há conselhos, que não há aferições, que o trabalho é de sintonia, empatia, validação, compreensão, mas a verdade é que não deve haver nenhum profissional da área que de vez em quando não coloque o pé em ramo verde, não arrisque um insigth que não lhe pertence, não tire palavras da boca, nabos da púcara, não faça uma transferência ou outra, uma contra-transferência, uma projecção, um desassossego, uma identificação. Não há nada a fazer, é da nossa natureza, e receio bem que não haja treino, competência ou ciência que nos balize eficazmente a acção, é errar até doer, sei disso também pela frequência com que se enganam em relação a mim. Por vezes encolho os ombros, outras tantas explico, outras ainda aviso que estão redondamente equivocados, mas as que eu mais aprecio é quando cá dentro, de mim para mim mesma, gozo o prato do tiro ao lado. O olhar radiante, por exemplo, pode ser da maquilhagem. O ar viçoso pode ser da gula, e o cansaço pode advir de uma festa pela madrugada afora, coisa boa, portanto. Não sabemos quase nada disto tudo, mas somos extremamente felizes quando nos enganamos, certíssimos das nossas certezas alheias. Deve ser também isto que faz do mundo um sítio cómico e louco: seremos certamente o único lugar do universo onde sabemos dos outros, muito antes de sabermos de nós.
terça-feira, 19 de abril de 2016
come chocolates, pequena; come chocolates!
Também eu às vezes não reconheço o momento. Agarro-me a um qualquer instante inflamado, respiro muitas vezes seguidas e sem parar, contorço-me a segurar palavras cá dentro da minha pessoa, a soltá-las e era ver abater quem passasse, quer fosse bicho, pessoa, coisa ou vegetal. Nessas alturas nunca me lembro de pensar na ira própria de particularidades tacanhas, pertenças do género feminino, aquele que se submete às mais diabólicas entidades: homem, hormonas, vaidade. Gostaria de encontrar um remédio para isto tudo, mezinha do antigamente, umas ervas, uns óleos, umas rezas, uma garrafa de azeite a alumiar a santa, uns terços e umas mãos que soubessem benzer e já estava, assunto arrumado, mal acabado, corpo abençoado, que daí em diante não haveria maleita que se entranhasse, TPM que se manifestasse, coração que se apaixonasse, vaidade que acordasse. Um sossego que só visto, apenas conhecido pelos homens, a faixa da população que não faz a mais pequena ideia do que é não saber se queremos dormir ou acordar, beijar ou bater, gritar ou sussurrar, correr ou parar. Só sabemos que queremos comer chocolates. Sempre, mais e mais chocolates.
segunda-feira, 18 de abril de 2016
não pescam nada da vida
"Folheio" o jornal online com muito menos ânimo do que o faria se o lesse em papel. O Público alicia-me com pequenas notícias no canto inferior direito do meu computador, para depois me atirar à cara, mal leio uma ou duas, que estou a atingir o limite máximo gratuito e que das duas uma, ou assino a mensalidade, ou brevemente fico a ler as gordas e nada mais do que isso. Nem sei se me importo muito com o assunto. Estou farta de política, não ligo nenhuma a futebol, vou-me perdendo com uma ou outra dica cultural, alguma notícia social, um ou outro apelo ao mundo animal e é só, uma tentativa de relaxar ao final do dia, muito pouco eficaz, nada adequada, longíssimo da bolha de relaxamento que ensinei ainda agora à senhora que atendi em último lugar. Disse-me ela que voou para um campo de flores de primavera, e eu estive quase a pedir-lhe que me levasse com ela, mas felizmente desisti e acordei a tempo, mesmo a horas de receber um telefonema que me informou que afinal consegui adquirir o livro em segunda mão que há tanto tempo esperava. Fiquei feliz. Combinei com a senhora a forma da entrega e o pagamento, e, devo dizer-vos, estou cada vez mais encantada com os prazeres da idade. Um conjunto de folhas por três euros, certamente com cheiro a mofo, são o quanto me basta para me fazer sorrir. E nem sequer me importo se vier anotado. A sabedoria em compêndio é extraordinária, e o que eu realmente gosto mesmo é de saber o que os outros sentem disto ou da outra coisa, quer seja proferido, gritado ou rabiscado, num espaço em branco qualquer. Os gajos do Público queriam dez euros. Não pescam mesmo nada desta vida.
terça-feira, 12 de abril de 2016
medos
As crianças têm medo dos tubarões, do escuro e das cobras. Escrevem isto completamente às claras no cartão do jogo, e enfiam com rapidez dentro da caixa. Cá fora, e sob a indicação de escrever a maior força que utilizam para ultrapassar aquele medo, escrevem: "não ir ao mar fundo", "a mãe", ou "ser valente". Os adultos escrevem em segredo e tentam esconder. Alguns desabafam coisas como "não conseguir fazer o meu filho feliz", e cá fora arriscam escrever grandiosidades como "amor" , "alegria", ou "capacidade de dar a volta por cima". Percebo-os na perfeição, estou com eles no medo, na força, na lágrima teimosa que insiste em aparecer quando os olhamos ingénuos aflitos com um "leão", uma "escuridão" ou um "animal comilão". Crescer é perder a capacidade de olhar o mundo de um território onde os sustos são todos pequeninos, mais ou menos controláveis, por vezes inofensivos, e que quase sempre passam com o colo da mãe. Quem já cresceu, por sua vez, ganhou a capacidade de dar esse colo, de matar monstros e bichos, de acender luzes, de curar feridas no joelho e de dar estaladas de mão cheia aos sonhos maus, que por vezes resolvem chegar. Os medos que sobram para esta gente grande são coisas que não se vêm a olho nu. Só se percebem se conseguirmos espreitar bem de dentro dos olhos, do coração e do sangue que corre dentro das veias. Devem ser coisa pouca, deveremos pensar, uns metros de pele, um sorrido no rosto, uma respiração muito forte e parece que passam. Ser grande deve ser mesmo bom. E rápido, deve ser rápido, os medos morrem enquanto o diabo esfrega um olho.
quarta-feira, 6 de abril de 2016
paragem obrigatória
Os treinos da bola estão suspensos. A grupeta desresponsabilizou o lombo, foi de férias, foi esquecida, foi demitida, achou por bem encostar ao sossego no dia da competição. Houve quem dissesse que a mãe não quis acordar cedo, é uma necessidade como qualquer outra, e o Domingo é dia de descanso, excepto para quem reza cedo na casa do senhor. Sinto-me mais ou menos no meio da guerra, estou careca disto no dia a dia, mas desta feita tocou-me cá dentro. Parte considerável da criançada investe com responsabilidade. Treina com afinco, acorda cedo para jogar, veste a camisola e atira-se de cabeça quando o adversário insiste, dá gosto de olhar a garra de equipa e, quando necessário, o bom perder. Eu, mãe, vou de arrasto e por dedicação. Coloco o despertador mais cedo do que na semana, visto-me de ténis e casacos quentes, percorro os pavilhões do pais e sento-me nas bancadas geladas, enquanto o vento uiva lá fora e a claques gritam cá dentro. Antes levava o jornal, depois deixei-me disso. Agora via tudo do principio ao fim, e batia palmas a todos, vencedores e vencidos, sem qualquer ponta de distinção. Fiquei no meio da barricada, insisto. Os treinadores não perdoaram as faltas sucessivas sem avisar e avançam com paragem obrigatória: não há mais treino, pelo menos por enquanto. Os pobres resistentes choram no carro enquanto me esperam. Os fugitivos do costume já fugiram há muito, são previsíveis os que se escondem para sempre. O desporto de equipa é isto mesmo, convém saber: ou há equipa ou não há jogo. A vida também caminha neste sentido, é um facto, e também convém ensinar desde cedo que por culpa de quem falha, perdemos todos. É justo? Não, não é. Mas não é possível mudar o mundo, nem no campo nem na estrada. É perder, aprender, chorar e avançar.
segunda-feira, 4 de abril de 2016
regresso à escola
O regresso à escola foi animado. As comparações de notas surgem em primeiro plano, os cinco injustos, os quatro assim assim, os três à rasca, os dois misericordiosos, os uns verdadeiros. Gosto muito de matemática para compreender o mundo científico. Aprecio a medida onde nos leva o conhecimento da biologia, os mapas de genes, as fórmulas que descobrem a cura do cancro, que permitem combater as demências, que nos possibilitam aperfeiçoar a técnica perfeita do rigor universal. Mas transformar conhecimentos em simples números absolutos nunca me fez muito sentido. Até porque, e bem vistas as coisas, ainda encontro poucos professores preocupados com a contabilização do que os jovens realmente necessitam, e ainda descubro, infelizmente, muitos pais pouco atentos à percentagem de alcance de felicidade. Vivemos todos numa era em que é mais importante um 100 a português ou a matemática, do que um 70 a satisfação pessoal, crescimento saudável e paz. Estarão certamente enganados, equivocados, centralizados no foco errado. Se todos caminhássemos para a evolução abrangente da diferença, em vez de corrermos para a uniformização das criancinhas, todas vestidas de igual, no colégio da elite, chegaríamos muito mais acima no conhecimento interno de cada um: o que mais importa para o crescimento do mundo, só os cegos do capitalismo não conseguem ver isto.
(O meu afilhado tem dois anos. Trouxe uma checklist infinita de pequenas aquisições, divididas entre quase conseguida, não conseguida, conseguida e perfeitamente conseguida. Fico feliz ao saber que ele consegue saber três cores, dizer um número de palavras que não me lembro bem qual é, reconhecer alimentos, e agarrar nos talheres como gente grande. Fico também bastante satisfeita pelo facto dele obedecer a algumas regras. Mas agrada-me muito mais saber que ele não obedece a todas, foge do comboio quando lhe dá na real gana, cospe as carninhas da sopinha, e berra quando lhe tiram os brinquedos porque "ainda não sabe partilhar". Um dia vais aprender meu querido, tens todo o tempo do mundo. E não, não tem de ser quando a tua educadora quiser, tem de ser quando a vida te ensinar e tu estiveres na altura de aprender.)
Não fui à reunião de notas do meu filho, que por sua vez só hoje foi espreitar a pauta. Irei assinar o papel um dia destes. Ele não se lembra muito bem o que teve ao quê, esqueceu-se, mas sabe que é suficientemente responsável para crescer, e que no meio desta selva toda vai bem, obrigada. Fico feliz por ele, por mim, e por toda a comunidade escolar que consegue manter-se saudavelmente em paz, no terrorismo educativo da sociedade.
domingo, 3 de abril de 2016
dedicação
O processo é usualmente rapidíssimo. Há instantes que se cravam na memória e ganham toda uma vida, na mira de se tornarem realidade todos os dias, como se se repetissem sem cessar, um martelo, só podem ser um martelo que insiste e persiste à revelia do querer. Adornam-se de um conjunto de artefactos de um poder incrível, os nossos sentidos, e assim permanecem no corpo, intrusivos, sempre que calha, que acontece, lhes apetece, lhes dá para aí. Deveria ser mais fácil matá-los, mas na verdade conseguem ser mais consistentes do que o presente que me entra pelos olhos, simples e quase perfeito, e ganham toda uma existência própria dentro da minha cabeça embotada. Sou por isso capaz de os reviver vezes sem conta, sinto-lhe o cheiro peçonhento, o ruído ensurdecedor, as cores de um negrume impossível, a lentidão com que me percorrem por dentro, como se de uma tortura se tratassem. É claro, sei de fonte seguríssima que os posso matar de uma vez. Sei que é possível atordoá-los com veneno, qualquer um dos mais mortíferos, e prosseguir sem que os segundos danados continuem a rodar no filme que teima, excessivamente grande, cá dentro. Um dia destes dedico-me a mim, preciso de me dedicar também a mim. Nesse dia talvez volte a escrever, muito sossegada.
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