Ao fim da noite de ontem recebo uma notícia esperada, mas mortífera. Morreu o neto de uma amiga, com seis meses de vida, vitima de uma doença rara. Ligou-me em soluços, e eu, que julgo tratar estas questões por tu, pelo nome próprio dado por quem cá vive, fiquei no momento sem palavras para lhe dar. Estanquei ali estupefacta, a escutá-la, incapaz e impotente de a salvar ao sofrimento. Cada vez mais descubro que não sei nada desta vida. Nem da morte dos outros, nem da dor de quem cá fica. Houve alturas da minha existência em que não julgava nada disto, sentia-me capaz de aprender muito, enquanto a vida me deixasse. Hoje vejo tudo exactamente ao contrário, não aprendo coisa nenhuma em concreto, não há verdades puras, não há receitas infalíveis. Há pessoas, há mundo, há sorte e há azar, há bondade e há maldade, há vida e há morte. Concluo que tudo isto são grandezas que se podem explorar, tentar compreender, analisar e dissecar, mas nunca controlar. Concluo ainda, ferida, que os afectos nos turvam demais a intelectualidade. Permitem-nos o toque e a partilha, mas matam a competência real, quando quem nos é próximo perde o norte. Não há dúvida nenhuma, perdemos também. Não deve haver destino sem esta deriva.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
segunda-feira, 30 de maio de 2016
domingo, 29 de maio de 2016
(...)
Percebo a loucura do mundo quando as mães me pedem para controlar em consultório a sintomatologia que incutem aos filhos, todos os dias. Presentemente tenho mães perdidas a quererem filhas perfeitas, outras ansiosas a desejarem meninos atentos e sossegados, pais violentos a queixarem-se da revolta do adolescente que mora lá em casa, e famílias sem tempo a estranhar o refúgio dos filhos, permanente e impossível de combater, nas redes sociais. O trabalho árduo foca as teorias sistémicas, mas na verdade recuperar questões de fundo é tremendo. A sociedade encontrou hoje em dia qualquer coisa semelhante aos dias do fim, e o que quero dizer é que poderemos piorar consideravelmente, claro, mas dificilmente conseguiremos manter a estrutura social à qual ainda estamos habituados. A vida é isto, nada é permanente, os hábitos reproduzem-se, por vezes alteram-se. Na morte dos ancestrais malignos, nascem os presentes, diferentes, eventualmente mais mortíferos. Já não há tanta negligência infantil. Temos mais cuidados de saúde, mais educação escolar, mais dinheiro e mais acesso à cultura geral. Temos na globalidade menos valores, menos tempo, mais doenças emergentes, mais solidão, menos educação de base. Ainda outro dia, num local público, um grupo de jovens competia pelo arroto mais alto. Também me lembro de na minha adolescência existir este tipo de competição. A diferença é que na época alguém ralhava, mal ouvisse o disparate. Hoje há uma indiferença misturada com uma descrença, polvilhada por muita resignação, servida com uma boa dose de desinvestimento. Ninguém cresce sem investimento real do próximo, ninguém aprende sem dedicação, ninguém ganha limites perante a isenção de quem, supostamente, deveria orientar. Qualquer dia arrotamos todos a este mundo farto de vazio, não há estômago que aguente, parece-me. É como mascar pastilha elástica permanentemente, sem engolir nada que nos sustente.
sexta-feira, 20 de maio de 2016
sabonetes de lavanda
Tenho sempre uma inveja requintada da imperial e dos caracóis, principalmente em dias de jogo. São aos magotes, homens e mulheres que se encontram na esplanada ao sol morno da tarde, acendem os cigarros, discutem as faltas, os foras de jogo, os golos falhados e os apontados, alguns combinam eventualmente outro encontro glorioso, mais para a noite, polvilhado por pimenta preta ou cantigas de encantar. Passo normalmente de carro, e nunca me junto à festa. Vou sempre em alguma direcção, levo sempre outro caminho, persigo usualmente um importante objectivo, que pode ser comprar uma alface, entregar uma encomenda, pagar uma conta ou trabalhar. Passo com a sensação amena de que não aprecio nada daquilo. Sei de mim para mim mesma que não me sentaria ali, no meio da multidão, de copo na mão, tremoço no prato, sorriso na boca e no rosto. A inveja vem normalmente depois, quando respiro fundo e descubro que a felicidade fácil deveria ser obrigatória de aproveitar. O Deus das pequenas coisas anda ali, e eu nunca o vi. Ainda não foi hoje, mas um dia destes, juro-vos, contrario o corpo e vou experimentar. Se não conseguir encontrá-lo peço o livro de reclamações, escrevo o que tenho a escrever, levanto-me e vou procurá-lo num outro lugar. A loja do Sousa, por exemplo, deve ser um bom lugar para se começar. Descobri que vende uns sabonetes de lavanda lilás de subir aos céus, vou comprar umas caixinhas e colocá-las a perfumar as gavetas do meu quarto. No regresso da loja tudo terá terminado, e posso sentar-me à vontade enquanto a cidade festeja ao longe, já fora dali. Nesse momento peço uma água, respiro fundo, sinto o cheiro da lavanda a entrar pelas minhas narinas, e fico mais sossegada. Acompanhada do meu Deus, serei capaz de ali ficar.
quinta-feira, 19 de maio de 2016
carpideira
Vi passar um menino pequeno pelas mãos da sua mãezinha. Levava um pirulito na boca, e tinha o ar de quem abre a goela por qualquer contrariedade da sua curta vida. Ia de olhos carrancudos, cabisbaixo, enquanto a senhora insistia que sorrisse, que saltasse, que se entregasse à idade da brincadeira, nunca mais lá voltaria. O pobre infeliz mantinha-se quieto, e perante a impetuosidade da mãe, chorou. Primeiro parou os passos. Depois esticou os lábios uns segundos alongados e cerrou os olhos com muita força, de seguida respirou fundo, e quando regressou a ele já um berro atravessava a Loja dos três balcões, dava a volta pelo Gonçalo das boinas, entrava e saía na ourivesaria e salpicava, já de longe e ao de leve, a casinha dos jornais. Apeteceu-me berrar com ele, naquele exacto momento. Invejei-o descaradamente. Quis tanto o seu grito, cobicei de tal forma o seu ar de desespero infortunado, que me apeteceu levá-lo para casa, colocá-lo no sofá da minha sala sentadinho nas almofadas, alimentá-lo a doces e contrariá-lo, sempre que eu precisasse de chorar. Na falta do meu grito ecoaria o dele, casa afora, noite dentro, a castigar a pobre da vizinhança. Na manhã seguinte ele descansava e eu ia à vida. Liberta pelo corpo esganiçado e solto de uma criança.
quarta-feira, 18 de maio de 2016
os dias do abandono
Acabei de ler " Os dias do abandono", o extraordinário conto de Elena Ferrante, e percebi que o anonimato a protegeu ao ponto de ela o poder ter escrito. Nenhuma outra pessoa o teria feito, não desta forma, só alguém resguardado escreve isto:
" Não passamos de seres ocasionais. Consumamos e perdemos a vida porque um certo homem, em tempos remotos, lhe apetecia descarregar o caralho dentro de nós, se mostrou amável, nos escolheu entre as mulheres. Confundimos o banal desejo de foder com uma delicadeza que teria por objecto exclusivo a nossa própria pessoa. Gostamos da vontade de foder que ele sente, iludimo-nos e pensamos que é uma vontade de foder só connosco, connosco só. Oh, ele é tão especial e trata-nos de uma maneira tão especial. Damos outro nome, a essa vontade que o seu caralho tem, personaliza-mo-la, chamamos-lhe meu amor. Mas que diabo leve esta história toda, este engano, esta presunção infundada. Do mesmo modo que fodeu uma vez comigo, fode agora com outra, que outra coisa pudera eu julgar que acontecesse? O tempo passa, uma vai-se e chega a vez de outra. Tentei engolir uns tantos comprimidos, queria dormir deitada no mais escuro de mim própria."
A comum das mulheres pode não escrever, mas qualquer uma o pode sentir.
(Estou cansada de ler palavrões. Sou muito cuidadosa com as obscenidades, tive até um certo desconforto no estômago. Deve ser da vergonha.)
terça-feira, 17 de maio de 2016
cura
Comi uma galinha cozida que me caiu mal. Deu-me a volta nas goelas, desceu com relutância, passou pelo meu corpo e não deve ter achado piada ao que encontrou lá dentro, quis sair e eu tentei impedi-la. Engoli em seco, calquei-a com água morna, sentei-me e comecei a ficar zonza, mas a danada da bicha não estava fadada para aquilo, e acabei por ter de lhe fazer a vontade. Há remédios santos e mezinhas históricas que já não se encontram em actividade. Renderam-se aos tempos modernos, às indústrias farmacêuticas, ao capitalismo e à sociedade. Os chás de camomila já não dão sossego, as laranjas já não combatem a constipação, o leite, está mais do que sabido, já não previne a osteoporose, e a canja de galinha já não cura a gripe e a indigestão. Para além do chocolate, claro, o chocolate também já não cumpre em plenitude o que sabemos ser a sua função. Devo dizer que me assiste por tudo isto o direito à reclamação, uma pessoa precisada já não pode contar com o efeito profiláctico, terapêutico e milagroso da alimentação. Das duas uma, ou é tudo de estufa, sem boa maturação, ou os males estão mais fortes, sem cura ou recuperação.
domingo, 15 de maio de 2016
metamorfose
Não faço a mais pequena ideia do que é transformar amor em ódio. Não consigo conceber no meu fraco corpo essa metamorfose, não por capacidade maior mas por falta de apetência, ou seja, não por qualidade, mas por puro defeito. Deve ser muito mais fácil, quando uma ligação se quebra, olhar para o outro e sentir um enorme desdém. Deve ser mais apaziguador dos sentimentos abalados ofender, atirar com toda a força as pedras que se colheram nos momentos íntimos e arremessá-las com a pujança da zanga, ao local exacto que conhecemos tão bem, ou não tenhamos sido nós a lamber as feridas, tantas vezes... Neste sentir não devem caber os momentos bons que se viveram, poderia nesse caso vingar a danada da tristeza, quem sabe. Não devem caber as alegrias, as conquistas, as descobertas a dois, morre tudo pelas mãos fortes de uma fúria cega, em completo desgoverno. Neste assassínio brusco e violento matam-se os ganhos, mata-se a possibilidade de admiração, mata-se o caminho, o progresso, a ligação, mata-se a dignidade e a alma, mata-se tudo o que poderia continuar a ser vivo. Mas deve ser tão mais fácil, mas tão mais fácil, que no fundo o que eu quero dizer é que invejo muito quem transforma amor em ódio, e que não precisa de sentir tudo o que nos pode trazer, duas pessoas que se perderam uma da outra.
Em hábito defendemos o direito ao básico, à zanga, à tristeza, à alegria e ao medo. Mas na realidade já sabemos que muitas vezes somos nós próprios que escolhemos o que sentimos, temos uma facilidade tremenda em substituir uma emoção pela outra, eventualmente sem a noção de que essa substituição nos eleva a um caminho opcional, mas não real, alternativo, mas não natural. Ambos têm defeitos e virtudes. A tristeza é seguramente muito mais produtiva, mas a zanga é francamente mais eficaz, muito melhor quando se quer rematar depressa e bem, com um nó completamente cego.
Em hábito defendemos o direito ao básico, à zanga, à tristeza, à alegria e ao medo. Mas na realidade já sabemos que muitas vezes somos nós próprios que escolhemos o que sentimos, temos uma facilidade tremenda em substituir uma emoção pela outra, eventualmente sem a noção de que essa substituição nos eleva a um caminho opcional, mas não real, alternativo, mas não natural. Ambos têm defeitos e virtudes. A tristeza é seguramente muito mais produtiva, mas a zanga é francamente mais eficaz, muito melhor quando se quer rematar depressa e bem, com um nó completamente cego.
sábado, 14 de maio de 2016
sujidade
Saí de manhã muito cedo. Sentei-me na pastelaria do costume e bebi um café forte que me queimou a língua com tanta força, que deixei cair a chávena no pires. Mena comia uma torrada ao longe e veio em meu auxílio, deu-me um copo com água, trouxe-me outro café, recomendou-me cuidado e poucas pressas dada a hora do dia, era Sábado, só eu é que parecia não estar a ver isso. Decidi ir à praça. A praça é um sítio onde me encontro com as minhas raízes, o cheiro do peixe lembra-me sempre a loja da peixeira onde eu ia em pequena, pelas mãos da minha avó. Recordo-me especialmente do processo de amanhar o carapau, abria-se ao meio, retiravam-se as tripas, deitavam-se para o chão, e logo depois chegava o gato que as comia cruas, rápida e bruscamente, ainda em sangue. Na praça de hoje em dia não há gatos. Há moscas, imensas moscas, que poisam no peixe com um sentimento de pertença que deve assustá-los, mesmo depois de mortos. Entram-lhe pelos olhos, dão a volta pelas guelras, saltam para as barbatanas, tudo debaixo dos olhos de quem os compra para o almoço, à dúzia, ao quilo, à posta, depende. Comprei uma raia para fazer uma caldeirada. Gosto de caldeirada de raia com sardinhas, forro o tacho com muito tomate, muitos pimentos, muita cebola, muitos alhos e muito azeite. Disponho as batatas por cima, coloco o peixe, e deixo cozer tudo no vapor do caldo guloso. Não me incomodam as moscas que me cheiraram o peixe que comprei. Não me incomodava o gato que comia as tripas do lixo. Não me incomodam as mãos de uma mulher que ensaca sem nove horas os queijos frescos para me vender, tal como não me incomodam os trocos que escapam da mão da outra, mesmo colados aos bolos secos. Não me incomoda nada na vida que cheire ao sujo da vida. Mas é capaz de me incomodar muito, a vida que finge cheirar a limpo.
quinta-feira, 12 de maio de 2016
pentear
Ainda há quem julgue que é só nas telenovelas brasileiras que os homens saem para comprar cigarros sem nunca mais voltar. É mentira, completamente falso, isto passa-se na vida real. A bem da verdade não foi bem comprar cigarros, foi comprar outra coisa qualquer, mas o que interessa é que não voltou mais, não disse adeus, não deu justificação à mulher, nem aos filhos, nem às clientes de tantos anos. Confesso que me preocupo com a família. Admito que me custa horrores escutar as poucas palavras dela, imaginar a confusão da rapaziada adolescente, pressentir o desconforto nos olhos tremelicos e molhados dos três. Mas não consigo deixar de lado o meu egoísmo, e o que verdadeiramente me revolta é o desrespeito pela clientela, neste caso por mim. Há muito tempo que me penteava os cabelos com afinco. Há anos que escolhia comigo os cortes, as cores, os caracóis ou os lisos, os penteados e os tratamentos, as madeixas ou o tom sobre tom. Foi na loja dele que descobri o melhor produto para o volume, o creme de pentear mais perfeito, o secador mais indicado, o amaciador mais patenteado. Hoje, neste exacto momento, amaldiçoo a fidelidade com que há muito o presenteei. Hoje, neste exacto momento, sinto-me eternamente despenteada, descolorada, desarranjada e desolada. Digo-vos mais, não lhe perdoaria se voltasse, o universo dos cabelos femininos é um território mais do que digno de manifestações violentas, reflexos de sentires extremos. Nem mesmo se a sua pobre senhora o recebesse de braços abertos, de volta ao salão. O abraçasse com todo o amor do mundo, o voltasse a acolher na sua casa, na sua mesa, na sua cama. Isso seria com ele e com ela, e entre marido e mulher não se mete a colher. Este caso é meu e do meu cabeleireiro, e aí sim, o caso assume proporções sérias e verdadeiramente imperdoáveis. Um cabeleireiro pode até zangar-se com a sua mulher. Mas não pode, jamais, virar costas às mulheres que penteia.
sábado, 7 de maio de 2016
perfecto
O mesmo assunto, um mesmo ramo, uma outra abordagem, duas visões totalmente distintas, e a verificação de que algumas palavras e posturas podem fazer toda a diferença. Enquanto um, e perante o meu problema, me diz com a boca cheia de nada " não percebo qual é o seu problema", a outra, com dois olhos, poucas palavras, muita sintonia e uns gestos cheios de tudo, desmonta-me a charada em menos de uma penada, ou seja, não só percebeu o meu problema, como o validou, o normalizou, o partilhou e melhor do que isso, conseguiu explicar-mo, tintim, por tintim, com as minhas próprias palavras. Cada vez mais me convenço de que a prática clínica não é uma ciência, é uma relação. Só alguém em perfeita conexão comigo conseguiria ir tão longe em tão pouco tempo, e sei que não há livro que lhe tenha ensinado isso. Os livros orientam o saber, mas só o corpo consegue ir onde nada mais pode chegar. E falou-se em espanhol, claro, na hora de la siesta, debaixo de uma trovoada interna e externa. Não se ouviu nadinha senão brandura, paz e sossego, e poucas vezes tinha estado tão acordada para mim mesma. Minha senhora, tiro-te o chapéu. Faço-te uma vénia, estendo-te um tapete, e só não me ofereço para te ouvir porque me sinto uma formiguinha na beira do tanto que tens para dar. Perfecto. Simplesmente perfecto.
( Tenho tanto para aprender que das duas uma, ou nunca mais paro, ou nunca mais me encontro.)
terça-feira, 3 de maio de 2016
vizinhança
O vizinho do segundo diz que gente como eu não faz falta. O povo precisa é de médicos e enfermeiros, para além de outros operacionais práticos que salvem pessoas, que ressuscitem gente, que curem doenças, que sarem feridas abertas, que se dediquem a limpar os despojos do corpo e a recolocar no lugar trapos limpos, lençóis enxutos, ligaduras sem sangue, pratos de comida. De que é que interessam os males da alma, pergunta-me, quando se está a sofrer com o corpo a doer, sujo, doente, fraco, moribundo? Pensei para mim mesma na razão daquelas palavras. Percorri em silêncio a brandura das minhas acções, a leveza do que digo, o desfalecimento do que faço perante a razão, a prática da vida, a solidez da existência, a magnitude do que se vê a olho nu. Está certo, totalmente certo, compreendo-o na perfeição. Para que a vida exista é preciso nascer, para que se possa existir, precisamos de um corpo, para que nos possamos mostrar é preciso que os nossos pensamentos se transformem numa coisa que se veja, e a verdade, a única verdade, é que me dedico ferozmente ao que não se pode encontrar. A vida já me deveria ter ensinado que só o que é palpável é verdadeiro, e que só o que é mensurável é real. O meu vizinho, carregado de dor até aos olhos, dispensa-me porque não sirvo para nada, mas ficou feliz, verdadeiramente sensibilizado, imensamente agradecido, quando no Natal lhe levei uma taça de arroz doce e um pote de mel. Para ele não importa que nada disso me tenha saído das mãos, que o arroz doce tenha sido feito pela minha mãe e que o mel tenha sido extraído pelo meu pai, estava ali, via-se claramente, tinha cheiro, cor, açúcar e canela. Ao contrário do tempo que lhe dedico, meu, arrancado das minhas horas, escutando-o todos os dias a falar da mulher que morreu. Somos tão iguais uns aos outros que a individualidade parece-me cada vez mais um constructo solitário, de algum ser morto há muito. Retiro o que interessa: há pessoas que pensam que sobrevivem a arroz doce, com muita canela, com virotes de enfeites retorcidos, e um paninho a cobrir. E são felizes, tão felizes assim, que chego a pensar que a felicidade é uma doce brandura, servida a quem aprecia retirar com um palito dos dentes os excessos, quando se comeu demasiada fartura. E retiro, claro, que gente como eu não faz falta nenhuma. Não interessa nem ao menino jesus.
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