Ainda me espanta a ignorância da vida. A consciência de que a existência humana é um conceito limpo e livre com um caminho simples a percorrer, como se a carne fosse sã, o juízo impune ao tempo, e a pele macia de um fresco eterno, com sabor a jasmim e flores. Ainda há quem me procure por querer trabalhar com velhinhos, por querer acompanhar nas comprinhas, por pretender preparar o medicamento, organizar a casinha, sentar para uma companhia de dois dedos de conversa, histórias ao adormecer e ao entardecer. O mundo vive tão longe da realidade que me mete dó e me mete medo. O fim do caminho, acreditem, não se parece com uma história de encantar esculpida no rigor de um pincel, numa tela de um pintor romântico. O fim do caminho precisa de sintonia e cuidado com tudo o que o corpo tem de pior. Não há só amenas cavaqueiras de pátio das cantigas, chega a haver mudez completa. Não se resume a passeios à beira do mar, pode não existir movimento. Não se compadece com uma casa bem arrumada e bem cheirosa, pode querer dizer desordem, sujidade, cheiro forte e agressivo, com vómito e fezes, suor e lágrimas. Não se parece com o idílico sonho da ajuda ao próximo só no que dá gosto ao ego, porque o que dá gosto a quem precisa já morreu, já perdeu a luz do mundo, já se esgotou nuns anos do antigamente. Dói-me a ignorância de quem desiste ao primeiro dia, porque pensava que o mundo não é isto. O mundo é isto e muito pior do que isto, é o choque, frente a frente, com a pequenez da humanidade. Há quem tenha medo, aceito, mas ainda assim dói-me a ignorância, que governa grande parte de um mundo com uma péssima consciência, do que somos na realidade: somos um pedaço de carne que apodrece com o tempo, povoado por uma alma; ambos merecem dignidade até ao último suspiro, logo, se não aguentam, não apareçam.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
quarta-feira, 24 de agosto de 2016
sexta-feira, 19 de agosto de 2016
camisas
Trocar de camisa é desabotoar os botões, despi-la pelas mangas, um braço de cada vez, deixá-la cair no chão e muito certamente pisá-la, se calhar em caminho aos tropeções, até que se faça luz na escuridão. Escolhe-se sempre uma nova mais bonitinha, mais inteira, mais imaculada, eventualmente de colarinho levantado e com botão de punho dourado, que nos deixe com aquele perfil impecável, saído da máquina e do ferro. Bom cheiro, bom corte, óptimo ar, et voilá, espalha-se certa magia, uns tais pozinhos de perlimpimpim.
Manuel trocava de camisa várias vezes por dia. Guarnecia-a com gravata e boina a condizer, e saía pimpão estrada afora, sempre bem adornado. Maria, selecta, ficava a vê-lo pela fresta da porta enquanto ele viajava em velocidade de ponta, rumo à victória. Há pessoas assim, que gostam de mudar de camisa mais frequentemente do que o cheiro do suor pediria, muito mais rápido do que a nódoa do vinho que caiu na curva da barriga, mais depressa do que o vinco que se desenhou tão formosinho, nas costas do banco do café. Necessitam de mudar de camisa à mesma velocidade com que esperam respirar farra e vontade. A camisa mortiça, concluo, deve ser um peso que faz muitíssima vergonha, à vista e ao coração.
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
para sempre
Maria apareceu-me muito casada. Muito mãe, pouco amada, muito dona de casa, suficientemente velha, pouco sonhadora, muito consciente, consideravelmente sofredora. Precisava de, aos oitenta, saber do amor da sua vida. Aquele que passava todos os dias à sua porta, na altura em que a cortina se abria, ela espreitava, a mãe saia e o gato avisava. Como se a vida proporcionasse os instantes perfeitos da existência, como se as estrelas se unissem para alumiar o caminho, como se as tempestades amainassem para deixar passar o amor, como se as estruturas da terra se alinhassem em posição exacta, para que no instante preciso tudo acontecesse como foi escrito nas linhas secretas do imaginário. O único senão foi a partida dele para muito longe, e a chegada do que viria a ser seu marido. Dá ideia que de repente o mundo conspirou ao contrário, e um qualquer desalinho se instalou na sua existência. Ele deixou de passar na sua porta, ela deixou de espreitar, o gato parou de miar. A vida esqueceu-se de lhe dar instantes perfeitos, muniu-a de desavenças, desamores e afectos menores. As estrelas apagaram-se a meio do caminho, as tempestades cresceram e criaram um dilúvio divino, morreram animais, pessoas, árvores e frutos, bons e maus, sonhos e fé. Desde aí até hoje, sessenta anos passados, não houve magia que revertesse o caminho. Sabe dele de longe a longe. Pergunta a uma e a outra, a esta e àquela, espreita numa ou noutra fresta, mas não mais o encontrou. Nunca percebeu o porque de neste mundo a conspiração ser mortífera, logo após a ter salvado. Eu, humildemente, não lhe reconheço a salvação, a não ser no imaginário. Ela aqui, ele lá, os dois lado a lado, ainda, num lugar que nunca morreu.
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
super-heróis
No Carnaval de uma escola perto de mim, houve há um tempo uma ideia genial. Mascarar as crianças de super-heróis, e deixar o segredo até ao fim, altura em que os pequenos aparecem todos eles vestidos de bombeiros. No imaginário e na fantasia existe o maravilhoso Super-Homem, o ágil Homem-Aranha, o poderoso Hulk. À volta deles aprendemos a construir uma realidade paralela, elevamos ao exagero as competências humanas inexistentes, selamos compromisso com os sonhos, e vamos mais longe na nossa capacidade simbólica de construir e acreditar. Mas é na vida de todos os dias que aprendemos realmente onde existe a força real. É nas horas difíceis que conhecemos quem nos salva efectivamente. É no terror da desgraça que concebemos que a verdadeira força está na coragem, na bondade e na dedicação de alguns, perante os outros. Um grande bem haja a todos os verdadeiros super-heróis. Estes, entre outros, merecem que todos nós lhe façamos uma vénia, lhe retiremos o nosso chapéu, lhe estendamos o nosso tapete e nos calemos, quando ousamos criticar.
terça-feira, 9 de agosto de 2016
MCA
Faz neste dia dois anos que um dos meus principais pilares deixou a terra. Calada, magra, doente, mais delicada do que uma flor, ensinou-me que a beleza é possível e que se pode sorrir até ao fim, que podemos amar o imperfeito, e que os velhos, mesmo os muito velhos, nos podem fazer uma falta imensa. Maria Carmina Alves. Com muita pena minha não lhe herdei o nome nem a altivez da pose, mas guardo-lhe parte das mãos no meu corpo. Um pouco menos habilidosas, ligeiramente mais inquietas, definitivamente muito longínquas, da perfeição da doce origem.
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
pleno
O amor é talvez a única forma de sermos mais plenos, ao amarmos vivemos mais. Ao amarmos vivemos tudo o que o outro vive, de bom e de mau, de ganhos e de desilusões. Chegamos a antecipar o que nunca acontece e a temer o que felizmente nunca chega, por amor. Amar é existir numa outra vida para além do nosso corpo, é conseguirmos ser felizes com sonhos que não nos pertencem. É ajudar a construí-los e saborear as medalhas, como se nós próprios as tivéssemos ganho. É gritar em sintonia, na zanga da vida. E é ainda chorar, se for preciso, porque a tristeza nos engole no exacto momento em que o outro nos disse que naquele instante está mesmo muito triste. Amar pode não ser salvar, pode não ser curar, pode não ser só sorrir. Amar é viver a vida do outro e a nossa, e criar um sítio onde simbolicamente sabemos que não somos só um. Somos muito mais do que isso, somos mais plenos, somos também a vida de uma outra pessoa. E vivê-mo-la também.
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
velha
Não me posso envolver demais nos problemas de quem me procura, dizem-me num jeito atamancado de conselho sábio, vindo de quem não faz a mais pequena ideia de como faço o que faço. Concordo sempre com o que considero ignorante, não por desconsideração, mas porque já perdi a paciência para explicar tudo aquilo que não querem perceber. Posso até insistir de mansinho numa ou noutra nota de lucidez. Posso aguardar dois segundos e esperar que surta efeito, mais ou menos o tempo de um abrir e fechar de olhos, de olhar para o lado e ver a paisagem, de engolir um gole de qualquer coisa que me refresque a alma deste calor infernal. Mas no segundo seguinte, e se percebo a retranca, desisto. Olho sossegadamente e aceno com a cabeça, posso murmurar uns hum hum de incentivo, chego até dizer que sim senhor, depende da intensidade da voz sabedora e do meu grau de tolerância. Hoje, por exemplo, tinha rido num cinema de criançada. Tinha comido pipocas doces e tinha comprado um livro maravilhoso que trouxe num saco fabuloso, pendurado a tiracolo no ombro cansado. Tinha ainda pedalado numa bicicleta ao por do sol, batida na cara pelo vento e pelo pó da terra do campo, ele há lá cenário melhor para me dotar da calma necessária para enfrentar o inimigo? Por conseguinte, acenei sempre com educação. Deixei aquela pessoa a pensar que eu sou uma espécie de cobra, que sacudo a pele gasta mais rápido do que um fósforo a arder na calha da escuridão, é um remédio santo para o sossego das almas, minha e dela, que sou generosa na minha bondade. - É que se não for assim fica velha num instante, profere, orgulhosa, no final. Eu sabia que o conselho era sábio. E sabia ainda que a dita senhora ficaria feliz na condecoração, estive bem, estive muitíssimo bem. De uma outra forma, teria cansado o espírito já fatigado. Teria falado para quem não me quer ouvir, teria por certo ficado irritada na contrariedade da postura excessivamente certa, tinha conotado o meu entardecer num qualquer aborrecimento digno de reflexão contraditória, não mereço esse desfecho. Assim, muito melhor, trouxe uma ideia para escrever e soltar dois dedos de escrita simbólica, uma evasão tão válida como outra qualquer que se preze. No meu caso inofensiva, apaziguadora, relaxante, extremamente eficaz na vida de quem, como eu, ficará velha num instante. Já vejo isso pelo canudo da premonição sábia de ainda há pouco, mas a bem da verdade, e mal virei costas, atirei-o para o chão e espezinhei-o delicadamente, sem ninguém ver. À senhora, que de vez em quando também apresento uns rasgos de burguesa.
terça-feira, 2 de agosto de 2016
farpas
Há muitas linhas que apago, logo após as escrever. São linhas que carecem de um filtro antes da publicação, que transmitiriam mais de mim do que o caro leitor poderia querer ler. O Correio da Manhã é o jornal de todos, sem filtros, sem edição, onde a notícia acontece na hora de transmissão. É o homem que mata, é o velho que morreu ao abandono no hospital, é a burla, é a violência doméstica, é a escumalha, é a vergonha. Em rigor, é a vida. Os jornais mais cuidados são polidos e utilizam parcimónia. São dotados de palavras escolhidas a dedo, de imagens acauteladas, de criticas sábias, de crónicas eruditas, pouco vadias, muito nobres, uma leitura da realidade. Em rigor, uma tradução da vida.
Não posso escrever a cru, fico demasiado vulgar. Porém não sou de excessos, claro, e não me encontro no âmbito selecto de nenhum semanário. Só aprecio a brandura do verniz, liso, brilhante, sem farpas, qualquer coisa parecida com algo que poucos apreciam saber. Um jornal que fica esquecido debaixo do monte, coberto pela actualidade, a ganhar pó velho no chão do quiosque.
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
água
A meio do dia tenho uns minutos de tempo que gasto a engolir um café. Cai-me na goela ainda fervente e eu encolho-me perante o imprevisto, que me queima as entranhas demasiado apressadas para previsões de segurança. Fico uns minutos a olhar o repuxo artificial que distrai quem espera na salinha, onde a máquina substituiu recentemente a cafetaria. Gosto da discrição da distribuição sem rosto que me permite comer chocolates de criança sem a pressão da foice alheia, perante a qual insistia em alguma explicação: o dia estava cheio e era necessário repor níveis de açúcar; a fome era negra e não apetecia pão; o calor apertava e tinha de ser um gelado, coisas destas, calar vozes, sossegar ânimos, explicar que a fraqueza da carne tem sempre uma justificação. Por ora basta-me inserir a moeda (o que me lembra terrivelmente os jogos de flippers, do tempo do insert coin), e escolher que pecado quero ter: chocolates, bolachas, bebidas doces, cafés, tudo sem explicação ou interacção, um prazer inédito para os que, como eu, não apreciam olhos excessivamente abertos na hora da degustação. Sentei-me uns minutos, muito poucos, os suficientes para apreciar o jovem que entra em cadeira de rodas, incapaz de andar, orientado pela taxista que todos os dias o leva ao destino dos tratamentos. Acenei-lhe, é da casa, tem um ar de cansaço. - E férias, pergunta-me, devo certamente acusar mais do que ele. - Vou entretanto, respondo eu, - E você, ouso perguntar. Acena-me com ar de quem não sabe o que isso é, e segue escada abaixo, numa descida demasiado contrária à vida. Volto a olhar o repuxo e para a água que insiste em não parar e quis gritar com ela. Vai de férias, apeteceu-me dizer-lhe, para com isso, que correria desorientada, sem saíres do lugar. Não disse nada, travei ainda a tempo, poderia bem ser mal interpretada. Comer chocolates sem olhos já é muito bom, gritar é outra cantiga, muito mais difícil de se lá chegar. As palavras não são iguais para toda a gente, vim a descobrir um dia destes. O significado de correria desorientada, por exemplo, pode ir do exagero de um prazer maior, a um cúmulo de um desprazer menor. Uma dança de dois passos ou várias modas onde me podem pisar. Doem-me os pés. Vou esfregá-los com creme e elevá-los num banquinho pequenino de três pernas.
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