quinta-feira, 18 de agosto de 2016

para sempre

Maria apareceu-me muito casada. Muito mãe, pouco amada, muito dona de casa, suficientemente velha, pouco sonhadora, muito consciente, consideravelmente sofredora. Precisava de, aos oitenta, saber do amor da sua vida. Aquele que passava todos os dias à sua porta, na altura em que a cortina se abria, ela espreitava, a mãe saia e o gato avisava. Como se a vida proporcionasse os instantes perfeitos da existência, como se as estrelas se unissem para alumiar o caminho, como se as tempestades amainassem para deixar passar o amor, como se as estruturas da terra se alinhassem em posição exacta, para que no instante preciso tudo acontecesse como foi escrito nas linhas secretas do imaginário. O único senão foi a partida dele para muito longe, e a chegada do que viria a ser seu marido. Dá ideia que de repente o mundo conspirou ao contrário, e um qualquer desalinho se instalou na sua existência. Ele deixou de passar na sua porta, ela deixou de espreitar, o gato parou de miar. A vida esqueceu-se de lhe dar instantes perfeitos, muniu-a de desavenças, desamores e afectos menores. As estrelas apagaram-se a meio do caminho, as tempestades cresceram e criaram um dilúvio divino, morreram animais, pessoas, árvores e frutos, bons e maus, sonhos e fé. Desde aí até hoje, sessenta anos passados, não houve magia que revertesse o caminho. Sabe dele de longe a longe. Pergunta a uma e a outra, a esta e àquela, espreita numa ou noutra fresta, mas não mais o encontrou. Nunca percebeu o porque de neste mundo a conspiração ser mortífera, logo após a ter salvado. Eu, humildemente, não lhe reconheço a salvação, a não ser no imaginário. Ela aqui, ele lá, os dois lado a lado, ainda, num lugar que nunca morreu. 

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