segunda-feira, 1 de agosto de 2016

água

A meio do dia tenho uns minutos de tempo que gasto a engolir um café. Cai-me na goela ainda fervente e eu encolho-me perante o imprevisto, que me queima as entranhas demasiado apressadas para previsões de segurança. Fico uns minutos a olhar o repuxo artificial que distrai quem espera na salinha, onde a máquina substituiu recentemente a cafetaria. Gosto da discrição da distribuição sem rosto que me permite comer chocolates de criança sem a pressão da foice alheia, perante a qual insistia em alguma explicação: o dia estava cheio e era necessário repor níveis de açúcar; a fome era negra e não apetecia pão; o calor apertava e tinha de ser um gelado, coisas destas, calar vozes, sossegar ânimos, explicar que a fraqueza da carne tem sempre uma justificação. Por ora basta-me inserir a moeda (o que me lembra terrivelmente os jogos de flippers, do tempo do insert coin), e escolher que pecado quero ter: chocolates, bolachas, bebidas doces, cafés, tudo sem explicação ou interacção, um prazer inédito para os que, como eu, não apreciam olhos excessivamente abertos na hora da degustação. Sentei-me uns minutos, muito poucos, os suficientes para apreciar o jovem que entra em cadeira de rodas, incapaz de andar, orientado pela taxista que todos os dias o leva ao destino dos tratamentos. Acenei-lhe, é da casa, tem um ar de cansaço. - E férias, pergunta-me, devo certamente acusar mais do que ele. - Vou entretanto, respondo eu, - E você, ouso perguntar. Acena-me com ar de quem não sabe o que isso é, e segue escada abaixo, numa descida demasiado contrária à vida. Volto a olhar o repuxo e para a água que insiste em não parar e quis gritar com ela. Vai de férias, apeteceu-me dizer-lhe, para com isso, que correria desorientada, sem saíres do lugar. Não disse nada, travei ainda a tempo, poderia bem ser mal interpretada. Comer chocolates sem olhos já é muito bom, gritar é outra cantiga, muito mais difícil de se lá chegar. As palavras não são iguais para toda a gente, vim a descobrir um dia destes. O significado de correria desorientada, por exemplo, pode ir do exagero de um prazer maior, a um cúmulo de um desprazer menor. Uma dança de dois passos ou várias modas onde me podem pisar. Doem-me os pés. Vou esfregá-los com creme e elevá-los num banquinho pequenino de três pernas.

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