segunda-feira, 11 de agosto de 2014

natalidade

No centro de saúde apinham-se velhinhos e um deles profere que não há descendência suficiente para os substituir. Os outros anuem com a cabeça, os mais novos dizem que sim com a boca, não há dinheiro, há vida profissional, o governo não ajuda. - Mentira, o governo instituiu há pouco um subsídio, diz alguém, pouca coisa, mas não deixa de ser um incentivo. Oiço tudo aquilo e mantenho-me calada. Sei da conjuntura, sei da crise, sei do trabalho em demasia e do dinheiro diminuto, mas ter ou não filhos não passa só por aí. Há uns anos atrás ter filhos fazia parte da cultura e da família, as pessoas casavam (mesmo que depois se divorciassem), e o dois era o número perfeito que ditava a ordem, mais um menos um, dependendo da vontade, da possibilidade, às vezes da sorte que se seguia a um erro de cálculo do calendário fértil. Depois começámos a era da evolução e da diminuição da importância da família e dos valores. Basta olharmos os cartazes da publicidade e as revistas da moda, para constarmos que as criancinhas estão excluídas dos restaurantes de luxo onde se ouve jazz e se degusta gourmet, das férias de sonho onde se fotografam mares infinitos num sossego possível apenas a dois, das carreiras de sucesso onde o tailleur só assenta às esbeltas que também não têm olheiras, que não são interrompidas a meio de uma reunião importante pela professora da escola, e que podem trabalhar sem interrupções de infantários insistentes ao menor sinal de febre, conjuntivite, virose ou estomatite aftosa.  O elixir da felicidade de hoje não é liderado por criancinhas, é encabeçado por dinheiro e viagens, paixões e vontades, carreiras e vocações, menos família, mais individualidade, menos conjunto, mais indivíduo, menos nós, mais eu. A dedicação ao outro está frágil há muitos anos, a realização pessoal depende mais do próprio umbigo do que do nascimento e do crescimento dos filhos, o ginásio é um local de culto onde se passam longas horas por dia, a cozinha um lugar de onde se foge a não ser aos fins-de-semana, nas noites longas de amigos, a dissertar sobre o futuro da sociedade que ninguém sabe onde irá parar, sem sopa, sem sujidade, tudo soft e muito clean. Não tenho nada contra este tipo de perspetiva. Não me incomoda de forma alguma a preservação da individualidade de cada um e de cada qual, não me perco a discorrer sobre as vantagens ou desvantagens de se ter filhos ou não, é uma questão pessoal, e como tal liberta de avaliações e juízos de valor, pelo menos da minha parte. Só não me parece ser tão simples como querem fazer parecer as análises que atribuem a diminuição da natalidade à falta de recursos do país e à culpa das políticas. Será também por isso, mas vai muito além disso.

Talvez um dia. Talvez um dia se reequilibre isto tudo.

8 comentários:

  1. Tenho a certeza de que a questão financeira tem um enorme peso. A afirmação de que havia muito pouco no passado e os filhos eram muitos não invalida, a meu ver, esse facto. São tempos completamente diferentes e portanto não comparáveis. Mas acredito que o problema de fundo seja precisamente o que descreve e que isto é a outra face da moeda de muitos avanços positivos que obtivemos. Nunca se vai poder ter tudo, seja qual for a direcção que tomarmos.

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    1. Claro que tem. A questão financeira é determinante em muitos casos. Mas em outros, muitas vezes até em quem tem mais poder económico, as prioridades são outras. Com toda a legitimidade, atenção. É como diz, são as duas faces da moeda da evolução... (só não gosto de ouvir que a culpa é toda do Estado e das questões económicas. No fundo, era só isso que eu queria dizer...)

      Um beijinho para si :)

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    2. Sim, e é curioso porque quando olho para colegas de infância, verifica-se que em geral os que têm menos estudos são os que avançaram mais rapidamente a ter filhos. O que dá para perceber a relação entre níveis de exigência pessoal e a ausência de filhos. E concordo, com toda a legitimidade, ainda que com consequências. Beijinhos

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    3. Essa relação encontra-se muito e e tem realmente a ver com a exigência e as expectativas... Vamos sonhando com o equilíbrio, se é que ele existe...

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  2. Texto fantástico!!! Eu também acho que a questão financeira tem imenso peso... nas pessoas que me rodeiam é esse o fator que mais contribui para a (não) decisão de ter mais filhos. Aliado à dificuldade em conjugar a vida familiar com a profissional, os horarios, a falta de tolerancia para as faltas por doença, e as creches... Claro que também acho que há uma cultura que não é pro-filhos. eu que queria ter mais e não posso. penso sempre na injustiça que é quem pode ter mais e não quer :) mas é uma questão complexa... se fosse facil, já tinha sido feito.

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    1. É complicado, claro que sim. E é um dos custos dos progressos, da evolução da mulher, das carreiras profissionais acima de qualquer coisa. A única coisa que me assusta é o desequilíbrio onde eventualmente chegaremos...

      Obrigada pela simpatia :)

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  3. Já tinha estado cá a comentar este texto magnífico, mas o comentário não ficou por lapso meu, agora confirmo. É isso mesmo que dizes: a crise não explica tudo, as razões que tão bem elencaste são uma evidente verdade.

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    1. São, Fátima. E a mim, talvez me assustem ainda mais do que a crise... No mínimo, estão no mesmo patamar...

      beijinho...

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