sexta-feira, 1 de julho de 2011

Dos sonhos

Chega sentado numa cadeira de rodas. Num corpo sofrido e amargurado, reúne a agreste verdade do que lhe calhou em vida. Profere-o com uma certeza cabal e inflexível, não deixando qualquer margem de manobra a quem o escuta, para lhe aligeirar a pressão da alma. Viveu muito, e muito depressa. Ao invés de se contentar com o que lhe chegava de perto, ousou querer o mundo como local para si, num descomedimento de ambição exagerada e vã, que não lhe coube no corpo. Sua avó, dizia-lhe que Deus escreve direito por linhas tortas, e foi provavelmente esse, o Deus de sua avó, que resolveu guarda-lo num sítio pequeno, circunscrito e limitado, reservado apenas aos locais onde se move, com ajuda dos braços, que treina todas as manhãs, no portão de ferro do jardim. Nunca temos o mundo todo. Ainda não percebeu verdadeiramente, se aquele Deus que lhe apregoam, é real ou constructo terreno, arranjado a preceito por quem justiça quer cometer, e que por não encontrar no mundo tal virtude, deposita o serviço nas mãos do longínquo, que nunca saberemos se há ou se não. Ainda assim, nem quer deixar na pessoa de sua santa avó, tamanho vaticínio, pelo que o que crê, é que algum ser supremo, dotado de dons e de braços firmes, estabeleça critérios na terra dos homens, que só isso justifica, não serem os próprios a fazê-lo. Encara tal facto no campo da submissão, provavelmente propositada. Fossemos nós dotados dessa independência inerente à justiça, e o mundo fluiria são e tranquilo, quase dispensando as alienações divinas, que para pouco serviam perante a harmonia. A cadeira de rodas, porém, é apenas um ligeiro limite. Presa, está-lhe sim a alma, já julgada e enfraquecida, que não lhe deixa réstias de esperanças de sonhos. Em tempos, não julgava possível viver sem eles. Hoje, sabe que é.

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