segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Suzette

A harmonia do padrão preto e branco geograficamente disposto no corpo de uma pessoa, fica sempre bem. Não importa sequer a ordem de distribuição do mesmo, poderemos considerar linhas, quadrados, assimetrias diversas, enfim, uma panóplia de motivos mais ou menos rectos ou lineares que nos arrumam a vista, por vezes cansada de cores. Não falo aqui da elegância que confere o detalhe branco a um corpo vestido de preto, uma realidade sabida e sentida por qualquer mulher que se preze, isso deixemos para outra discussão. Não secundária, atenção, mas sobejamente avassaladora para que nela me concentre neste último dia do ano. Não me apetece, vagueio por ora entre ligeirezas de espírito verdadeiramente açambarcadoras, passas, bolos reis, sonhos de abóbora e uma agenda novinha em folha onde está escrito que tenho 365 dias para dar uso como eu muito bem entender, uma riqueza que só visto. Falo mesmo só na harmonia, até porque hoje encontrei a cinquentona Suzette devidamente adornada de um modelo do género, enquanto bebia o seu café matutino. Desejou-me os votos da praxe, ficam sempre bem neste dia, e continuou a conversa com o proprietário do café que a questionava sobre o seu magnifico estado de conservação ao longo do tempo. Fiquei ciumenta, confesso. A dita, esquecida pelos anos, vendia cor e esplendor devidamente enquadrado no rigor da indumentária, e ofuscou-me num milésimo de segundo, coisas da vida, às quais já estou habituada. Concentrada justificava o facto com um primor de fazer inveja, é a lucidez característica de cabeças sossegadas, qualquer coisa que há muito me abandonou, um delito atestado em cada centímetro, interno e externo, do meu ser. Erro de percurso, devo dizê-lo. O excesso de pensamentos, diziam-me ontem, é motivo mais do que suficiente para que percamos a clareza e para que fiquemos fatigados. Olhamos o todo, captamos primeiramente o conjunto, o real terreno onde nos deveremos mover, mas na ânsia do pormenor avançamos e encaramos o detalhe que por si só nos prende, ainda que possa valer nenhures. Julgo que eventualmente seria prudente sujeitarmos o pensamento ao treino afincado de contrariar esta tendência, nos limites da razoabilidade, claro está. Olhar de longe mais vezes, ausentes do corpo, se possível for, elevando a ideia significativamente até um qualquer píncaro isento de possibilidade de minúcia. E conseguir assim alguma leveza, própria de muito poucos, eventualmente até maior funcionalidade.
Entrar em 2013, por exemplo, é por si só um mero detalhe. Deve haver fogo de artificio perto, mas eu prefiro a fraca fogueira lá de casa. As passas dizem que são doze, mas eu gosto delas e sou capaz de fazer isso por mais, outro pormenor, espero bem não deixar de ser feliz por causa disso. Se delicadamente levantar voo, lá mais para a meia noite e ofuscada no barulho da festa, encontro tudo o que preciso de ter, num raio abrangente mas alcançável.

(Caso não tenham percebido, caso me tenha perdido, isto foram apenas uns votos de bom ano novo. A Suzette é verdadeira, o resto são divagações excessivas de espíritos miudinhos. Mas a malvada espicaçou-me a vaidade, devo confessar, estou mortinha por me enfiar num vestido preto debruado a branco. Os sapatos, esses, ainda não decidi, mas quaisquer uns que me elevem com a elegância exigida me parecem bem. Gosto de alturas, é  isso. Vá lá saber-se porquê.)

domingo, 30 de dezembro de 2012

...

Se podemos ser jovens aos noventa? Não sei, não faço a mais pequena ideia. Isto é, não faço uma ideia vivida, faço uma ideia confirmada em corpos externos ao meu. Não é a mesma coisa, claro que não é. Sei o suficiente para acreditar que sabemos realmente o que nos passa no corpo e pouco mais. Mas quando oiço uma pessoa de noventa dizer em sorriso desdentado que vai passar o final do ano na discoteca do momento, não posso deixar de sorrir. E de sentir, apesar de serem somente palavras, quiçá de humor momentâneo, que a juventude é uma grandeza do caraças que pode viver connosco para sempre. O para sempre, e ao contrário do que possa parecer, é um grito de liberdade. Por ser possível. 

sábado, 29 de dezembro de 2012

A Sua



(Há dias em que espero ansiosa que me agarres numa rua exposta aos olhos de quem passa ao lado. Não me incomoda sequer que percebam o meu ânimo inquieto, que sintam a urgência liberta, que me vislumbrem a pele que desliza por baixo das tuas mãos que me alcançam no exacto instante em que respiro fundo e sucumbo à vontade, forte, de te sentir perto. Não me canso nunca de te esperar, mas há dias em que esgoto respirares. Ensaio então, como se possível fosse, caminhar num sossego manso e discreto, fingir que não encastoaste o cerne de mim mas um outro sítio qualquer, para me permitir um descanso merecido por entre as noites vazias de nós. Mera ilusão sem substância, simples aligeiramentos sem sentido, que mal te capto à distância de uma ideia acordo esbaforida, perdida nas horas infinitas que me estancam e me deixam ausente de intenção, resumida unicamente à cadência, portentosa, de ti.)

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Chão

O chão é um sítio que pisamos enquanto andamos de um lado para o outro, que sentimos debaixo dos pés como uma tábua rija que nos suporta os passos, ora trémulos, ora certos. Gostamos de o saber consistente, forte o suficiente para que nos guarde o corpo a direito, mais ou menos como uma linha recta nos segura as letras que deixamos escorrer dos dedos constelados de sentimentos, ora trémulos, ora certos. O corpo não é mais do que o lugar onde os sentimos, onde os arrumamos em cada escaninho embebido, onde afagamos as incertezas e arrematamos as certezas que nos guiam a cada aurora de dias escolhidos e vividos sem tempo, subjugados aos momentos construídos cá dentro, os nossos. Às vezes, vindas de desuniões abertas em chãos meramente ideados, sentimos confederações de forças maiores que nos tremelicam além do sossego reclamado. Que nos fazem subir, antagonicamente, claro está, ao cimo de um qualquer monte, mentiroso de vazio. Nessas alturas, em que o chão se agita, ansiamos um contrabalanço impositivo. E será porventura descalços, nos pés e na entidade, que sossegamos outra vez.

( Retirar o abrigo aos pés tira-me toda a graça. Retirar o abrigo à entidade, confere-ma outra vez.)

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

sapatos

Um dia ainda vou conseguir sentir-me elegante dentro de uns sapatos pretos sem salto. Houve quem há pouco me dissesse que isso é pura ilusão da minha cabecinha fraca, que a verdade verdadinha é que os saltos fazem milagres por mim, que a mãe natureza foi aquela que me enjeitou ainda antes da nascença, deixando-me a uns bons centímetros do que seria desejado para que eu pudesse acomodar os meus pobres pés nuns quaisquer sapatos estilo sabrina, umas doçuras adornadas a laços, bolinhas, biqueiras de verniz e outras particularidades, que os transformam no sapato mais delicado que existe. Em tempos disseram-me, um senhor que me tratou de uma ciática malvada, que as mulheres ficam bonitas de toda a maneira, incluindo sem saltos. Disse-me aquilo a esticar-me o costado ao limite das minhas possibilidades, enquanto os meus ossos rangiam de dores infligidas em cada vértebra retorcida pelas suas mãos, e atirava-me as palavras como se fossem balas, pudesse eu e tinham regresso garantido. Não podia, estava peada, precisava daquela massagem para voltar a colocar os meus pés no chão e para conseguir caminhar a direito, uma necessidade mais do que urgente quando o nosso corpo cede às maleitas dos ossos. Em desespero, imaginem só, consegui prometer-lhe parcimónia, cuidado extremo e dedicado dali em diante, caminhadas frequentes a sapatarias a fim de substituir o arsenal que me ornamentava o armário, projectava até, vejam bem, novas bainhas nas calças que me permitissem a adaptação sem correr o risco de me estatelar no chão por desastrados tropeços. Foi tudo em vão. Acabei de deitar fora o último par sobrevivente, adquirido ao abrigo da moderação. Eram azuis e aos quadrados, uma candura que só visto, mas ressequíram, mirraram,  quase desapareceram. Deu-lhes uma moléstia qualquer, talvez a do abandono. Não há nada no mundo mais destruidor.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

A culpa morre solteira

Há coisas nas quais deambulo em frequência, mania de pessoa desassossegada, que em vez de descansar em chás quentes de cidreira com bolos secos e doces, se emaranha no vento frio que bate o jardim, vazio de gente. Não sei ao certo, e continuando a deambulação, se a culpa das desilusões que sinto é minha, ou se de quem me desilude. Já formulei  puros axiomas fundamentados em mim própria, já conclui até teorias brilhantes e eternas sobre o assunto, verdadeiramente válidas enquanto duraram, pedras basilares, guiões consistentes que me empurraram, um de cada vez, alternadamente. Aqui também entra em consideração importante o conceito de eternidade. Não sei muito bem o que o pressupõe, na prática deverá ser uma impossibilidade, dado que a finitude talvez seja das características  mais aplicativas a tudo o que vive no universo, pelo que logicamente, se deve aplicar também a convicções. A questão inicial, a minha dúvida, deverá então prender-se com a expectativa? Ou deverá, e em oposição, prender-se com a capacidade de entrega? Ou até, e indo mais longe, com a própria competência de cumprimento? Tendo em conta que eu posso querer dar o que não consigo, por questões diversas, ficando pois imersa em sentimentos de frustração e de falha dignos de sofrimento. O encontro a meio do caminho talvez seja uma das soluções. O irmos somente até à linha central, esperando que do outro lado a resposta seja idêntica só que inversa, numa harmonia plena e sem precedentes. Nunca haveria o malogro de uma esperança, nunca existiria a decepção subsequente, haveriam unicamente caminhos equitativos que por si só pressupõem a existência de uma coerência universal existente apenas na nossa mente, quando a mesma se emaranha nas projecções e esquece a vida real. Será então impossível, concluo. Não somos dotados de talento estrutural, pelo que o único caminho que nos resta parece-me ser o conhecido, o acidentado, o arriscado, o aventurado. Vou-o trilhando, por vezes a contragosto. Aguardo o que não devia, entristeço quando me dão de menos, ou quando espero demais, e o melhor seria não fazer caso dos verdadeiros culpados. Esquecê-los, deixá-los vaguear no mundo sem ónus acusatórios, permitir que respirem em paz e sossego por entre os demais, iguaizinhos, sem tirar, nem pôr. Eu própria, claro, fico aquém do caminho de muitas distâncias. Sinto-o amiúde na minha pele, nos olhos de quem me olha, no corpo de quem me deposita em pedestais que não mereço mas que me entregam, sem qualquer tipo de opção. Outra questão pertinente, pois. Como poderei rejeitá-los? Como preservar os que me elevam, para além do que eu consigo disponibilizar? Meras perguntas, com odor de café forte a amansar o vento, a mais inquieta das intempéries. Externas.

( No cabaz do natal vinha um saquinho de chá de cidreira. Diz lá que modera a tristeza, a irritabilidade, a consternação e o desânimo ocasional, por permitir um equilíbrio do sistema nervoso. Ajuda a combater a insónia e favorece um bom funcionamento do estômago. Alivia enjoos e cólicas intestinais. Não percebo, juro que não percebo, a minha insistência no café.)

domingo, 23 de dezembro de 2012

votos e bolo rei

Tudo é o que é dentro de cada um de nós, e isto partindo do pressuposto do qual eu gosto muito, de que a existência nos nasce no corpo e na mente, imaginação incluída, claro, e fora disso nada me parece que exista. O meu Natal é por exemplo bolo rei, daquele de massa tenra ainda a saber a fermento, coberto com frutas verdes e encarnadas, pinhões ou amêndoas, que se pode torrar quando fica duro e barrar com manteiga, para comer acompanhado de café forte. Era também os fritos da minha avó, e é ainda muito mais coisas que agora nem vêm ao caso. Percebo claramente que existam milhões de Natais diferentes do meu, um para cada pessoa do mundo, podendo haver pontos que se tocam mas nunca concepções perfeitamente iguais. Não existem concepções perfeitamente iguais e isso é uma das coisas, para além das triviais que todos gostamos de pedir, que eu gostaria verdadeiramente que quem nos rege incutisse algures entre o coração e a cabeça de toda a gente, eventualmente aninhado num esconderijo esquecido, não fosse escapar pelos olhos ou pela pele, nunca mais se apanharia. Não sei, mas por vezes fartam-me as teorias das diferenças que quase ninguém respeita, a consideração pelo outro que quase ninguém tem, a continuidade da prevalência da superioridade, uma das mais tacanhas manifestações humanas, cometida em logro, só pode. É que isto até tem mais vantagens, práticas, é bem que se entenda, para além desta vertente natalícia e ligeiramente piegas que me inunda juntamente com o espírito da época. Permite por exemplo que na minha casa o bolo rei seja distribuído de forma sensata e completamente económica, sem qualquer tipo de sobejo, o que nos dias que correm é uma coisa valiosíssima, imprescindível arrisco dizer. O meu filho come as frutas, eu prefiro claramente as nozes, as amêndoas e os pinhões. O meu filho enfarta-se com o bolo no dia até não conseguir mais, eu morro por ele a saltar da torradeira, doirado e seco, quando já ninguém lhe consegue pegar. Não sei verdadeiramente como seria se todos gostássemos da mesmíssima coisa. Não sei o que seria de nós nas primeiras horas, em luta acesa por gulodices iguais, ou nos últimos dias do pobre acepipe, que assim chega para mim, torrado e delicioso. Poderia dar mais exemplos. Poderia até esticar as linhas do post para além do que seria possível alguém conseguir ler nos intervalos dos filmes natalícios, das rabanadas e das prendas que nesta hora já inundam as árvores do País, mas se calhar não é preciso, até porque tornar-me-ia maçadora, muito para além da conta habitual, e eu de facto não quero nada disso. É Natal. Enfartamentos só de bolo rei. Ou de azevias de grão, ou de licores de ginja, ou do que bem vos aprouver. Ide, ide. Em paz, saúde e amor.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

nomes

Nunca pensou muito no assunto. Às vezes até se esquecia, rabiscava-o depressa nas folhas quando era preciso, sem que sentisse qualquer aprumo quando o escrevia ou quando o dizia. Mendes. Desde sempre que assinava Mendes no fim do seu nome, num acto desprovido de significado ou sentido, achava até que poderia assinar outro, se de repente algum sussurro lhe murmurasse ao ouvido um nome qualquer, sem que isso lhe acartasse qualquer tipo de remorso ou manifestação corpórea de incómodo. Depois houve um dia em que pensou muito no assunto. Foi numa tarde de Dezembro perto do Natal, quando se fechou dentro de uma sala de livros empoeirados marcados a fotografias sépia com poemas escritos à mão. Todos tinha o nome de António Mendes, o avô paterno que nunca conheceu. Não sabe porquê nem porque não, mas a partir daquele momento o nome fazia-lhe um quê de história. Passara a ter um sentido, um qualquer conteúdo que até então desconhecia, quando era apenas dele. Não sei se explico porquê, há coisas que até deveriam ser sempre nossas. Deveriam ganhar conteúdo e sustento quando presas à nossa existência, deveriam guardar dentro das letras fundo suficiente para que delas nos orgulhássemos, mas a verdade é que precisamos do passado que não conhecemos e ao qual gostamos de pertencer. Engraçado, porque eu há muito que sou Ferreira, mas Raposo é há pouco tempo. Nasceu-me algures a meio da minha vida, quando um velho que já não vejo há muito me guardava numa soleira da porta, bem perto de mim. Dei-lhe sopas à boca, escutei-lhe os medos e arrecadei-lhe algumas dores cheias de remorsos vividos para sempre. Era um Raposo estranho e, julgavam muitos, sem coração. Se calhar, admito, o coração nasceu-lhe tarde, precisou de germinar-lhe no peito lá mais para o final da vida. O coração pode nascer-nos com o tempo, é um facto mais do que comprovado por mim. Pode nascer-nos apenas quando resolvemos que deveremos dar corpo ao sentir que guardamos escondido num local inacessível, que se calhar nunca tínhamos visto. Ou que nunca nos tinham mostrado. Estas pessoas a quem nascem corações no fim da vida, vivem duas vezes, quem sabe até mais. Todos nós, de resto, vivemos várias vidas ao longo de uma só. O meu avô teve duas delas totalmente distintas. Numa, já tardia, o nome dele nasceu em mim. Não em soletração, há muito que o sabia dizer, mas em substância.

...


( Agora já me parece que posso colocar uma música de Natal. Esta sempre foi das minhas favoritas, é provável até que já a cá tenham escutado. Entretanto também já posso afiançar que as receitas da consoada estão escolhidas. Bem como o local onde irei passar a noite, que não é sempre o mesmo. Mas o que me parece mesmo importante foi a carta que o meu filho escreveu ao Pai Natal. No final dos legos e dos jogos para a Nintendo, estava em destaque uma frase que dizia que queria paz para todas as pessoas do mundo. O mundo, este mesmo mundo onde vivemos, seria tão melhor se não crescêssemos nunca. Ou se crescêssemos mais devagarinho. Não sei, eu também penso na paz, no amor e na saúde de toda a gente. Não falo da boca para fora quando os desejo, mas a verdade é que eu acho que a pureza com que as crianças o fazem é outra. Nós adulto desejamos de outra maneira, talvez até porque sabemos a impossibilidade dos nossos desejos. Se calhar o segredo afinal encontra-se aí. O mundo, este mesmo mundo onde vivemos, seria tão melhor se não deixássemos de sonhar nunca. Haverão mais segredos, estou certa, mas estes agora parecem-me mesmo muito importantes. Pelo que os deixo aqui, ainda que certa da impossibilidade de cumprimento.) 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

...

Temos a estranha mania de excluir ao infinito os que já se sentem excluídos. De fecharmos os olhos para a sua existência, de passarmos ao lado e de cara voltada, de os arrumarmos num local onde não incomodem, onde não atinjam a nossa sensibilidade, onde não nos façam comichão idêntica à que nos pode causar uma etiqueta esquecida no pescoço. Não é fácil, às vezes não chega fingir que eles não existem, porque os que incomodam mesmo arranjam forma de se insurgirem e de se mostrarem. E é mesmo nesses que gostamos de pegar para recolocar num qualquer sítio específico para desadaptados, onde existem programas ou currículos especiais, como por exemplo junto ao senhor António que arranja o jardim, ou junto à Dona Maria que faz sandes de fiambre no refeitório e que pode mesmo ser uma boa aposta para o adolescente agressivo. Retira-se da turma, abriga-se segundo um decreto ou, na impossibilidade, segundo a autorização máxima do executivo, e problema resolvido. A turma sossega, os professores voltam a conseguir dar as aulas, os meninos aprendem e não importa grandemente o que aconteceu ao desadaptado. Importa apenas que deixou de incomodar, e isso, isso é que importa. 

(Consigo, como que por obra de magia, entrar no corpo desta gente toda. Não a cem por cento, impossível, mas numa percentagem gigantesca, acreditem. O desadaptado, por exemplo, não gosto de estar lá dentro. Mas que raio de vida é esta que me bate desde que nasci, e que agora resolve que me há-de excluir, apenas porque eu faço igual com as pessoas à minha volta? Mas não foi isso que ela me ensinou? Mas não é isso que ela quer que eu aprenda? Então, e se não é, porque não me ensina outra coisa? Pode ser que eu aprenda... Pode, pode ser. Mas quem ensina, e agora sou eu do lado dos professores, tem sérias dificuldades. Como é que nós conseguimos manter em contexto de sala de aula, juntamente com outros vinte e muitos, um aluno conflituoso? Como conseguiremos ensinar a matéria? Como nos é possível gerir a turma e quem quer aprender? Salvem-nos, não sabemos o que fazer... Pois, não sabem, porque não é fácil. E o que eu gostava mesmo era de chegar aqui ao final e dar um remate certeiro, daqueles que às vezes arrisco, se ele fosse possível, mas o pior é que não tenho. Pelo menos sem grandes mudanças estruturais que me parecem miragens nos tempos que correm. Falar em bom senso, será muito? Se calhar é e se calhar também não chega, mas temo seriamente ter de ficar por aqui. Pode ser que nos valha, quando mais não seja para nos fazer pensar no que é que levou a isto, no como é que poderemos gerir isto, e ainda, mas não menos necessário, como é que conseguiremos combater as repercussões futuras. E sim, podemos reflectir sobre isto à lareira, em frente a uma caixa de Ferreros, com luzinhas a piscar na árvore e chás de alfazema a fumegar nas chávenas, na noite do novo ano. Sempre me parece melhor do que ver a Casa dos Segredos. Ou o Toca a mexer, que apesar de ter a Bárbara Guimarães em mini saia, é um tremendo atentado ao bom gosto.) 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

India

Resolvi ir à India num dia de chuva pela manhã. Percorri os números do banco num relance rápido e fiz meia dúzia de contas que me disseram que o melhor era esquecer o devaneio e rumar a terras próximas, quem sabe até ficar por casa. Ainda assim resolvi consultar os sites de viagens conhecidos, procurar as melhores promoções que me permitissem uma estadia de pelo menos dez dias, incluindo uma visita ao Taj Mahal. Imprescindível. Consciencializei que para tal coisa necessitarei de entrar dentro de um avião um número de horas consideravelmente superior ao que me é humanamente possível. Analisei a agenda, demasiado cheia para poder retirar nesta altura do ano os dias que necessito para prosseguir com o meu destino, e ainda assim escolhi uma semana que me parece liberta de responsabilidades e que tentarei manter escondida do mundo só porque sim, tal e qual como se ali eu não existisse, como se naquela altura eu me apagasse aos meus, que por cá ficarão sossegados. Quando esse dia chegar vou acordar muito cedo. A mala estará pronta de véspera e eu vou com pouco mais do que a roupa do corpo. Um mapa, não quero perder-me geograficamente, uns fármacos de largo espectro, um telefone, preciso de manter alguns contactos na altura em que vergar à solidão e à distância. Não tenho a menor dúvida disso, vou ceder. Vou sentir-me perdida no meio das vacas sagradas, do hinduísmo e das tamburas, e vou sentir uma falta imensa da minha zona de conforto e das minhas pessoas. Provavelmente vou dormir até me cansar, ou então e em alternativa,  vou palmilhar descalça as ruas de Agra, cheirar as casas e as gentes, passar despercebida aos olhos de quem não sabe quem sou e encontrar, assustada, partes de mim. Depois vou regressar, as viagens de regresso são-me sempre muito mais fáceis. O avião nunca abana e se abanar eu não tenho medo. Gosto de chegar rente à noite, vejo as luzes ao longe, mas ainda consigo distinguir com exactidão os contornos dos prédios, das ruas e das pistas de aterragem, quando já me encontro muito perto do chão. Não bato palmas no final, nunca me apetece.

(Quando voltar, e ainda que sem nunca ter chegado a partir, vou sentir que o meu mundo sou muito mais do que eu. A liberdade é qualquer coisa que proclamamos como se fosse nossa mas não é. É um terreno idealizado e conspurcado pelo mundo que nós próprios construímos, e onde nos perdemos, uma e outra vez, sempre que descobrimos a verdade. Isto hoje aqui foi só uma história pequena e completamente desconexa. Mas podem ler uma a sério, muito mais abrangente e direccionada,  aqui. )   

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Senhora

Vejo-a descer apressada na calçada escorregadia que a leva à estrada. Na mão tem uns sacos de crochet azul por onde escapam fios de lã colorida, linhas de bordar, revistas velhas e casaquinhos de malha grossa. Na outra transporta uma mala de pele castanha, o que juntamente com um vestido azul com borboletas bordadas a fazer sobressair todas as curvas e reentrâncias internas e externas, a transformam num cenário mirabolante, com demasiadas coisas para se olhar ao mesmo tempo. Ela porém parece não ligar. Concentra-se em transportar a sua carga em braços, reunindo as forças para se manter erguida por entre os buraquinhos da calçada branca que lhe prendem os pés elevados nuns peep toes encarnados, lindos de morrer. Vai proferindo umas palavras baixinho que eu mal consigo decifrar ao longe, que lhe saem dos lábios nacarados e grossos, desperdiçadamente entretidos a falarem sozinhos. De vez em quando gesticula em dificuldades por entre a sacaria diversa que lhe entorpece as mãos, na altura em que a sua voz se eleva ao limiar da polidez, o que quase a deixa inserida para lá da linha na qual escolheu mover-se nos dias que  hão-se vir. Nessa altura percebo-lhe as palavras, oiço-a num grito seco e estridente, muito embora da sua boca não lhe saia quase nada. Não falamos só com a boca, eu já sabia, falamos com os gestos descompassados, com os passos em desequilíbrio, com a pele pálida e entristecida que tapa migalhas de gente partida. Abeirei-me dela. Cheguei-me mesmo muito perto, ao ponto de conseguir escutar os rumorejos  que coloriam ligeiramente ao passar os lábios doces e desenhados a pincel macio, dos quais nasciam lágrimas pequeninas que se perdiam num instante, no espalhafato do ornamento. Pensei falar-lhe. Julguei por poucos momentos que as minhas palavras poderiam acolher-lhe a intempérie que lhe explodia do corpo, mas resolvi ficar calada. As palavras, as que deixamos escorrer da boca quando aflitos no desespero disfarçado, podem mais não ser do que meros desperdícios inglórios, pelo que lhe dei as mãos e caminhei ao seu lado. Sozinhas e num tempo sem fim. 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Pesadelos

Conseguimos reunir dentro desvios suficientes para que consigamos cometer actos de crueldade. Não me parece possível que nasçam connosco, que se encontrem enraizados na gente tal e qual o instinto de sobrevivência que nos acompanha desde os primórdios dos nossos dias e até sempre, leito da morte incluído. E então intrigam-me, inquietam-me, ainda que possam estar longe de mim. Normalmente viro-os e retorço-os, tento encaixá-los em teorias distintas desde as mais simples às mais intrincadas, com diversos complexos incluídos, ensaio entrar em cabeças que não me pertencem sem qualquer tipo de direito, conhecimento de causa, legitimidade ou exequibilidade, a fim de conseguir absorver qualquer coisa que me explique em coerência, o porquê da barbaridade extrema. Nunca nos é possível porém, e nos terrenos da personalidade, perceber com exactidão os comportamentos, projectar certezas absolutas ou estabelecer teorias irrefutáveis, pelo que acabo também eu a reger-me por meras projecções e ao abrigo de suposições que alio à humanidade, a mais  enredada das existências. Às vezes, muitas vezes, chego a esquecer-me dos limites. Embalo-me ingénua e desatenta nas blandícias simples da generalidade dos corpos, eventualmente os mesmos que de vez em quando se zangam com o mundo, e fico incrédula perante a revolta. Questiono-me de onde virá, deambulo perdida entre sacudires desnorteados, erros de percursos, perturbações nascidas ou construídas, mas permaneço insatisfeita no entendimento conseguido, sempre próximo de coisa nenhuma.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Contemplações



O mundo não acaba ainda, digo eu sem qualquer tipo de legitimidade probatória. Não deveríamos dizer estas coisas, muito embora os exercícios da lógica nos firmem as palavras que depomos por entre as certezas construídas no regimento dos dias, que nos compõem em jeito de irmandade, mais coisa menos coisa. Mas também e ao mesmo tempo, não sei se a coerência recebida por mãos de ciências distintas me deverá sossegar para além da razoabilidade encerrada nos limites do passado, sendo o porvir um domínio completamente inexistente e consequentemente imerso em total desconhecimento. Não sei se me apraz pensar muito no assunto. Não sei sequer se algum dia terei posições claras e definidas que excedam os limites físicos do meu corpo, sendo que até esses e muito embora supostamente previsíveis, deverão ser acautelados em planeamentos e projecções futuras, dada a fragilidade comprovada na qual nos movemos enquanto matéria e espírito, totalmente circunscritos, a quê, não sei. Depois abro os olhos e observo o redor que guardo em cada fragmento de mim. Escuto sons, sinto verdades, vejo uns horizontes que se abrem e se estendem sem  impaciências, quase como se as brisas divinas soprassem em quartos crescentes de luas nascidas em horas exactas, enquanto os planetas se alinham seguidinhos no domínio do sol que alumia Lisboa. Não sei ao certo o porquê das insistências. Não explico as ânsias curiosas que nos comem, que mais não são do que agonias de espíritos inquietos demasiado abarrotados por avidezes, excessivamente esquecidos de contemplações. Erro crasso, digo eu. Eventualmente, abusivamente e sem dever.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Dezembro

Dezembro é, e tal como Agosto, aquele mês em que as pessoas vivem. Soltam os tempos presos na pele, guardados na penumbra da espera ansiosa por umas horas perfeitas, que se idealizam por entre os desperdícios dos dias que passam parados em corpos desatentos. Gostamos de olhar de soslaio para as pessoas que correm à nossa volta, de as passajar ao de leve e à distância de um telefonema apressado, de as saber bem e de saúde num desvio imposto pelo cansaço imperfeito que nos come a paciência e nos faz adormecer, todos os dias à mesma hora, com a cabeça deitada em arrumações solitárias. Dormimos sobre o assunto ou sobre outra coisa qualquer, acordamos no outro dia com o entorpecimento igual ao da véspera, arrumamos o rosto ao espelho, abrimos as janelas que nos acordam por fora e descemos as escadas que nos ligam ao mundo, para hibernamos uma e outra vez, guardados até aos dias em que escolhemos viver. Normalmente em Dezembro, tal como em Agosto, vive-se. Descerram-se os corpos aflitos, sorvem-se os licores de um só trago, enfartam-se os estômagos e fervem-se os afectos abandonados nas lareiras que crepitam ao som da música do natal. Na hora marcada abrem-se os embrulhos e afagam-se os ânimos despertos, bebe-se um digestivo e arruma-se a casa, a mesa e o corpo, que espera, já quase adormecido, o Reveillon

( Gosto de Dezembro, o mês do frio. Gosto de Agosto, o mês do calor. Gosto de todos os dias e de todas as horas, e gosto dos instantes que me fazem gente. Não aprecio corridas ou excessos, nem vidas com hora marcada. Às vezes, muitas vezes, também eu corro demais.)

domingo, 9 de dezembro de 2012

O Senhor Zé comprou uma vez uma cadeira de massagens interessantíssima, onde ele se sentava todos os dias sem excepção, com o intuito de massajar as costas arrumadas pelo tempo, as pernas retorcidas pela fraqueza dos ossos, os músculos contraídos pela falta de magnésio, nunca tomou o suplemento, achou sempre que não era preciso. Trabalhou uma vida como engenheiro mecânico, aturou cães, gatos e pouca gente, não estava para isso, as pessoas tiravam-no do sério, as mulheres davam-lhe cabo da paciência e as vizinhas chegavam para que se consciencializasse a cada dia que o melhor era manter a solidão ímpar que conhecia desde sempre, a única onde encontrava um estranho conforto sem pés aquecidos, sem chás quentes adocicados a bolos, sem camisas engomadas a preceito, borrifadas com lavanda ou ornamentadas com lencinhos no peito. 
Depois e assim de repente, sem justificativas ou fundamentos que se vissem, começaram a surgir-lhe no caminho umas gentes simpáticas, pessoas que a troco de dinheiro lhe traziam para casa utilidades sem fim, desde panelinhas aptas a cozinhar sozinhas, a aspiradores que limpavam em profundidade e com eficácia comprovada, passando pela referida cadeira, isto entre outras coisas que lhe deixavam à porta sem ser preciso que ele saísse de casa, se deslocasse ao local da compra e acarretasse com as ditas, e saber-se-ia lá como, uma vez que todas as diligências eram de quem tão cortesmente lhe oferecia as oportunidades de negócios, do melhor que havia no mercado, e sem qualquer tipo de constrangimento. 
O Senhor Zé que não era cá de modas adquiriu tudo o que os euros disponíveis lhe permitiram comprar, umas centenas segundo oiço dizer, e armou-se de verdadeiras preciosidades, quase todas ainda encaixotadas e para sempre paradas, que se arrumaram à espera de existirem na dispensa da casa, já vazia de tudo menos do gato Sebastião, um matulão preto de olhos verdes com ar de poucos amigos que passa os dias a comer ração e a dormitar dentro das diversas caixas de cartão. Ainda ninguém o conseguiu apanhar, que segundo consta costuma virar-se a quem chega perto. Mete respeito, ordem na casa, e vida, muita vida, onde tudo o resto já morreu.  

(O mundo é um local escabroso para existir em determinadas alturas. Uma delas é o principio, a outra é o fim, o que só pode provar que a verdadeira existência deve de estar algures pelo meio. Depois ainda poderemos ter sorte, é um facto, mas isto de eu continuar a acreditar que a vida também é um jogo de azares, mete-me um medo do caraças.) 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Grandiosidades

Chega-me sempre com um ar de vitória farta, daquelas que nos alimentam o ego como uma feijoada nos trata da gula, e cheinho de prosápias insólitas, grandes o suficiente para que não caia por terra nos próximos anos, ainda que a sua jactância não seja mais do que uma mera nica de coisíssima nenhuma, que ele aumenta para seu belo prazer, possivelmente crente de que é de facto maior. Armo-me de paciência, engulo devagarinho e de vários goles as sapiências que emana de si, aceno com a minha cabeça insistentemente e sem ouvir quase nada, olho de frente, não vá achar-me em desinteresse e esqueço quase tudo no limiar de um segundo, o grande pecado que me permite continuar a ouvi-lo como se de uma sumidade se tratasse. Hoje insistiu a fundo. Explicou-me por A mais B os pormenores de funcionamento de maquinaria diversa, fez questão de me dar a conhecer o que toda a gente já sabia, de descobrir o que há muito já lhe foi dito, de enunciar os pontinhos todos que percorreu até conseguir, por obra de mérito, resolver a séria problemática quase impossível. De vez em quando tem por hábito arquear os braços e girar os dedos em torno da testa, ao mesmo tempo que faz uma estranha pausa, como que em pensamentos profundos, capazes de comandar. No final de tudo, conversa e gesticulação adjacente, confesso, já estou normalmente enojada. Já não consigo muito bem disfarçar o enfado, continuar a engolir para dentro de mim vaidades inconvenientes, fingir que me encontro defronte a um qualquer ser dotado de inteligência maior. Hoje hesitei no que fazer. Pensei ser este o dia em que da minha boca sairia um chorrilho de palavras arremessadas ou umas faiscas dos olhos capazes de matar gente, mas acabei por respirar fundo e por o convidar para a festa do Natal, uma tábua de salvação, ou certamente não se calaria nunca, tal o empenho da dissertação. Ele disse que sim, claro, poderíamos até precisar dos seus préstimos. Anui com a cabeça e confirmei. Há sempre tanto para fazer. Carnes para panar, pratos para enfeitar, teatros para representar, músicas para cantar, fraldas para mudar, famílias por receber.   

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

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A razão e a emoção talvez sejam os principais responsáveis pelos conflitos internos que nos nascem por dentro, encavalitados uns nos outros, cada um por si, em lutas ofegantes e arrebatadoras que nos levam as forças, nos tiram o fôlego, nos deixam indolentes de forças e de intenção. Não aprecio de forma nenhuma quando ambos se travam dentro de mim, quando o que sei ser certo não é o que me apetece, quando  ensaio deixar-me cair na impetuosidade irrequieta, sempre insinuante e encantadora. Normalmente desprezo estes sintomas, fortes o suficiente para que o meu corpo ceda rendido ao augúrio do alivio, para logo depois se matar de arrependimentos.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Machadinha


Um dia tinha eu poucos anos e cantava qualquer coisa parecida com este título numa eira de pedra cercada a fenos, mesmo ao lado do sapateiro que vendia botas cinzentas que eu não podia ter. O sapateiro tinha duas filhas, uma alta e magra a outra baixa e gorda, que me olhavam sempre com desdém enquanto eu brincava com o primo Rodrigo, que era delas e não meu. Lá dentro da sapataria tinha nascido um mofo que tingia as caixas de um cinzento desmaiado e que subia pelas paredes mesmo até ao tecto. O tecto era baixo e tinha umas telhas de vidro fosco que deixavam entrar alguma luz do dia para dentro do barracão atulhado de botins de borracha, pantufas de xadrez, sapatos de senhora de biqueira redonda e as botas cinzentas, acolchoadas, que me faziam as delicias e que nunca me foram dadas. Mesmo ao lado morava a minha amiga Nádia que partiu há muito e que eu nunca mais vi. A casa dela tinha um alguidar onde se tomava banho, uns buracos no chão onde cabiam os meus pés, um colchão definhado onde dormia gente, um pai que gritava muito e uma avó que um dia morreu a beber vinho de uma taça de pé alto. Tinha ainda uma mãe com um nome doce e um gato amarelo que desapareceu atrás de uma gata e não mais regressou. No alpendre havia um baloiço preso numas vigas de madeira grossas que rangiam a cada puxo das minhas pernas, que saltavam sempre mais alto, e que me fazia imaginar que tocava nos céus. A machadinha era dançada por muitos meninos na eira ou na estrada de terra batida onde os carros caminhavam devagarinho, sem pressas ou impaciências. Não haviam luzes verdes ou vermelhas, haviam cabras a cortar caminhos, silvas que cresciam para fora do lugar, amoras que luziam na nossa boca. Não haviam urgências, não haviam medos, haviam noites e dias e um tempo sem fim. Hoje o que me veio à memória foi só a música. De rompante, senhora de si, despontada por coisa nenhuma que se visse. As restantes vieram atrás. De mansinho, a instalarem-se com zelo, não fosse eu estar esquecida de todo e puxá-las para fora com força, definitivamente, para morrerem logo ali. Parvas que são. Podiam entrar sem permissão, jeitos ou cuidados, tal e qual a machadinha, intrusa e repentina, sem licença que lhes fizesse falta. Não há tempo que as guarde, que vêm daquele que não existia.

( Um dia, muito tempo depois, encontrei numa feira umas botas cinzentas muito parecidas com as do sapateiro da aldeia. Agarrei nelas, revirei-as de um lado para o outro, atestei a qualidade do acolchoado e a biqueira redonda, calcei-as nos pés e mirei-me num espelho de barbear preso na porta da carrinha branca. Ficavam estranhas, demasiado largas nas minhas pernas magras que quase pareciam dançar no meio do enchimento, nada a ver com a acomodação que eu sentia haver com as pernas das senhoras que as calçavam, roliças e torneadas, debaixo das saias de lã.)  

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

...

Tenho uma pontada nas costas do lado esquerdo do corpo. O pescoço dói-me, deve ser do tempo. Tenho uns olhos que vêem letras pequenas apenas quando devidamente enquadrados dentro de umas lentes de uns óculos pretos em massa, comprados há tempos, velhos, a carecer de aumentos de graduação. Não simpatizo com oftalmologistas. Irrita-me colocar aquelas armações disformes enquanto olho para um quadro com figuras pendurado na parede, para depois declamar compassadamente para que lado é que se encontra a abertura, da maior à mais pequena, até à máxima capacidade da minha visão. Tenho por outro lado clarezas mais limpas do que a água que nasce da terra. Se me perguntassem em tempos se quereria estas últimas realidades dando em troca a minha destreza fisica, teria dito que não. Hoje, e se me perguntassem se voltaria atrás, regressando ao que tinha e perdendo o que ganhei, daria exactamente a mesma resposta. Não poderia nunca voltar a viver sem mim. Talvez até seja este um dos motivos, pelo qual o tempo nunca recua.

( A medição dos limites será por centro um dos principais motivos pela aversão ao oftalmologista. Estou-me a borrifar para as estremas do meu corpo, não gosto de as testar, de as demarcar, de as calcular. De resto, não gosto de nada que me quantifique a existência, qualquer coisa muito superior a números, a centímetros, a pesos, e a todos os consequentes refreamentos.)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Migas com entrecosto

O prato tinha entrecosto frito com muita gordura e migas cravejadas de toucinho saboroso, à portuguesa. A  sangria não tinha nada a ver com o resto, as frutas boiavam entre o gelo e a colher de pau, e temiam decerto o encontro com a pratada robusta, que precisava realmente de um outro sustento. Um crépe suzette na sobremesa. Nos olhos muito grandes pareceu-me que encontrei uma força pouco crente, um fazer-se à vida sem vontade e com muito medo, uma qualquer dissonância que não mais me largou o corpo. Já há muito que me vejo deparada com juventudes que crescem devagar ou depressa, depende. Depende da vontade, depende da circunstância, depende dos dias de sol ou de chuva, ou depende até de coisa nenhuma em concreto, um calhar, um acaso ou uma sorte que se pode encontrar numa esquina de um prédio, num acordar destemido, numa corrida sem direcção atrás de um caminho qualquer. Normalmente crescemos cheios de ânimo, fundado ou infundado, e é tão bonito que assim seja. Crescemos no encalço de uma paixão desmedida, de um sonho fugidiço, de um propósito que nos agarra a vontade e que nunca mais a deixa fugir para lugar nenhum que não o escolhido. E isso costuma ver-se nos olhos, também eles em crescimento, brilham por dentro, por fora e acredito até que vêm o mundo de uma outra forma qualquer. Acredito, não, sei. E era por isto mesmo que eu esperava encontrar-lhe vida que se visse. Vida impressa e vida expressa, vida latente, na espera de viver ainda mais. Não havia, c'um raio. Havia uma estranha junção, de acomodação, ligeiras felicidades, teimosia e alguma vontade, que mescla meu Deus. Na fartura da comida e na fraqueza do corpo. 

( Estive quase a comer-lhe as migas, a beber-lhe o líquido, a devorar-lhe o crepe. Aguentaria perfeitamente as incompatibilidades da mesa, podia engoli-las, digeri-las, sustentar-me por umas horas de antipatias gastronómicas.)

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