Diz ela que o divórcio acontece no quarto. Esqueçamos as avessas amanhadas em anos a fio, crescentes nos dias de frio intenso e de chuva miudinha, molha tolos e molha parvos. Esqueçamos as desavenças nos filhos, nas vestes e nos sustentos, estes últimos sempre demais ou sempre de menos, dependia de quem dizia e de quem fazia. Esqueçamos a farteza da rezinguice crónica dividida em partes exactamente iguais, em dois corpos completamente distintos no resto, haja entendimentos em alguma coisa que seja. Esqueçamos os dias sem falar e as noites sem tocar com o coração, as datas perdidas e os sonhos desfeitos, as tenções inacabadas por uma desavença qualquer. Esqueçamos as mãos que não se deram com o peito, os beijos que não se uniram com vontade, as palavras que não se disseram e as que se atiraram em flecha apontadas aos olhos e em reacção. Esqueçamos as zangas duradouras e as omissões persistentes de um bom dia que é para dizer todos os dias e com o mesmo gesto, é a força do hábito que nos edifica enquanto gente, única e relacional. Nada disto é divórcio se o quarto for sempre o mesmo, insiste. Nada disto é separação se os corpos se encontrarem todos as noites à mesma hora, de longe, visíveis aos olhos e ao odor, eventualmente à audição, que com os anos os ruídos do corpo assanham ao limite da evidência. Divórcio é afastamento do corpo para fora do alcance dos sentidos práticos da vida. É deixar de ouvir e deixar de ver, deixar de escutar e deixar de cheirar. Tudo o resto que morre nos dias tem um qualquer nome que eu desconheço. Mas que pelos vistos, divórcio não é.
O que me faz reflectir... Todos os textos que aqui publico são de minha autoria, e as personagens são fictícias. Excluem-se aqueles em que directamente falo de mim, ou das minhas opiniões, ou onde utilizo especificação directa para o efeito.
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
fusões
A colateralidade cerca-nos a existência ao limite do razoável. Experimento-a todos os dias, e talvez por isso a encare no limite da racionalidade. O mundo afigura-se como um local osmótico onde somos, damos e recebemos. À casualidade, não há quem a explique. Já a fusão, por sua vez, faz-me todo o sentido. Também por isso não perco tempo quando penso e acautelo. Ganho. O crescente não nasce irreflectido, mas submerso num conjunto de gestos direccionados e confluentes.
(Ora, não dás um sorriso sem que eu te responda. Tal como eu não encosto a cabeça, sem que a tomes no teu colo.)
terça-feira, 27 de agosto de 2013
...
O excesso de maldade é sempre um transbordo, do que adversamente se reuniu no corpo.
(Há quem diga que não há pessoas más, há pessoas loucas. No seguimento conclui-se que o mal é uma espécie de desfasamento sem antídoto permanente. A intensidade desvanece quando a carga alivia, mas não morre. Morrer é de velhice, quando o corpo caduca e o espírito acompanha. Aturar os loucos de uma vida é o fado do mundo, um ciclo interminável, consequente. Sem apelo nem agravo.
O que sinto pela maldade? Pena e alguma tolerância. Adivinho-a um desconforto sem fim de amargura recalcada.)
O que sinto pela maldade? Pena e alguma tolerância. Adivinho-a um desconforto sem fim de amargura recalcada.)
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
o simples é belo
Os jardins são qualquer coisa de sossegado, dividem-se em caminhos de areia e passeios de pedra, e encontram-se neles pessoas deitadas em cada recanto devidamente ornamentado a cores de petalazinhas perfumadas. Há os que escondem gente que lê debaixo de um tempo quente, e os que envolvem namorados que caminham de braço dado com um chapeau que resguarda narizinhos delicados, tementes ao sol. Mais um pouco e a bengalita rodava, era o quanto bastava para fazer relembrar o cenário dos filmes do antigamente, assim se tapassem ligeiramente as donzelas que hoje apreciam um bom bronzeado sem excessos de pózinhos Guerlain. As pernas senhores, todos haveriam de apreciar as pernas. Cruzam-se em sombrinhas de arbustos pequeninos perto do chafariz, e baloiçam-se, demoradas, nos minutos da tarde que chega lampeira e curiosa, à espreita. Suas donas reviram-se, para um lado, para o outro, sempre devagar. Uniformizam a tonalidade em cadeirinhas de encosto reforçado e borrifam a pele com a miraculosa eau thermale, que vai compondo o corpinho magro e torneado que se deleita sob os olhos do sol e de todos os outros que possam passar perto: os curiosos, os invejosos, os desejosos, os meros contempladores. Eu observo tudo e todos. Olho demoradamente os pormenores do fotógrafo que centra a árvore centenária que trepa o monumento, e encosto a cabeça no braço atento ao meu rosto sossegado; espreito em segredo a mãe que embala um bebé que chora no colo fusional; miro o velhinho que passeia o passeio dos justos naturalmente cansados. No final do trajecto, os caminhos errantes das palavras soltas contrariam ligeiramente a singela contemplação mental, mas só um bocadinho: o requinte dos sentidos também mora na simplicidade.
terça-feira, 20 de agosto de 2013
figos
Cheirei uma cesta de figos maduros. Estavam à distância, mais ou menos uns cem metros, e o malvado do aroma percorreu-me as estranhas que ainda desesperam zangadas na ânsia da degustação. Lembrei-me da árvore que vivia inclinada no monte escondidinho, à beira do rio. Eu, ladina, subia-a com mãos, com pés e com espírito, e uma vez lá em cima estava no topo do mundo. O mundo não tem topos, hoje sei isso. O mundo tem locais, todos da mesma altura, e somos nós que nos elevamos quando vencemos. No cimo da figueira, no fundo do lago, no pico da serra, na serenidade do vale.
domingo, 18 de agosto de 2013
Paris
(Fotografia do Paulo)
Há muitos anos rumei numa traquitana de quatro rodas ao lado da pequena prima e da grande avó. Levava por missão ser a co-piloto do tio, pobre de mim, que dormitava aos soluços acordados por travões de carro cansado, no qual sonhava com a Torre Eiffel e com a Fête des Loges, prometida. Voltas e reviravoltas e só recordo que morri de medo na cascata que descia em rompante por uma pedra gigante, nós de boca aberta, eu sempre tão pequenina. Desta feita é a cidade que me abre as portas da luz num tempo que me escorre pelas mãos muito mais do que as águas do Sena, que me guardam o amor para sempre. Há lendas que encerram verdades que queremos dizer ao mundo num grito nosso e o resto que fique muito sossegado. Pode escutar, pode calar, pode fugir ou pode passar, o que importa é o que gritamos e sabemos, não interessa verdadeiramente senão a quem sente, muito embora o mundo delas se alimente. A propósito, há por cá uns noivos que casam eternamente, dia após dia, a deslumbrar a élégance da capital francesa, num chic style romantique, perfeito.
Ainda há pouco subi uma escadaria com quatrocentos e muitos e ultrapassei as gárgulas do tempo que relembram os vivos e os mortos de que a maldade existe até no mundo dos santos, nunca conseguiremos sossegar, nunca poderemos dormir, jamais deveremos esquecer.
Deixei-a um dia por Saint-Michel e só tenho de me redimir pela renitência, mas caramba, não é de ânimo leve que se abandona Paris. A abadia tolheu-me a teimosia que se esvaiu envergonhada, nada a fazer-lhe senão matá-la, perante tamanho assombro rodeado a águas e areias movediças capazes de engolir gente para os mais recônditos sítios guardados pelo arcanjo. Oh, mon Dieu, como eu aprecio un bon mystère.
Por ora segue-me a torre alumiada por uma lua do lado esquerdo, o local preciso, nunca deveremos esquecer a importância da exactidão, do pormenor, do detalhe. A vida é feita de espontaneidades mas também de rigores, nunca me convenceram do contrário. Nada é submetido à linearidade absoluta, quanto mais a fragilidade dos corpos que circulam ao acaso (?) nos dias escolhidos por uma divindade qualquer. A confluência é o que nos constrói na diferença: o saber que se é, o acaso que se aprecia, o sentir que se arraiga no corpo que segue sem direcção, totalmente sabedor do caminho que escolhe ( precisa?) por uns dedos estirados, abraçados ao coração. Na epítome da luz lêem-se e relêem-se umas entrelinhas minuciosas mais do que certas, direitinhas como os degraus que nos transportam a Sacré Coeur. Neles podemos ver os noivos, podemos espreitar-se a Torre, podemos até descê-los rumo ao muro onde a cidade se define em todas as línguas possíveis e imaginárias, apenas superadas por tudo o que a boca não consegue dizer, os dedos não podem escrever, o corpo não permite expulsar.
Por ora só queria mesmo saber como se pode não regressar, et c'est tout. Uma impossibilidade, eu sei, e talvez por isso irei levá-la comigo. Encontrará no meu corpo o lugar exacto onde deve de estar, ao lado da severa saudade, au pays des rêves.
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
palmier coberto
Os anos passam-me pelo corpo com uma velocidade alucinante, pregas na cintura, celulite nas coxas, peles secas nos pés, cabelos brancos na cabeça, rugas no canto dos olhos que vêm ligeiramente pior de há uns anos a esta parte, palato cada vez mais guloso, numa inversa proporcionalidade a toda e qualquer lógica. Nesse campo concreto dos sentidos valem-me os ouvidos cada vez mais apurados e mais requintados, ouvem tudo e só mesmo o que lhes apetece, potencialidade esta não atingível por qualquer órgão do corpo, convenhamos. Um louvor publico lhes deixo, merecidíssimo. Ainda outro dia sentei-me numa pastelaria e não havia o pecado que eu tinha escolhido para aquela altura, um direito adquirido por gulodice refinada, posso lá eu com contrariedades destas no fim de um dia de trabalho. Uma pessoa quando escolhe, escolhe, deveria ter direitos. O pasteleiro simpático indicou-me uma outra delicia que me deixou a olhar para a montra demoradamente, de facto caberia em mim, nem que sobrasse, sobra sempre qualquer coisa em formato adiposo aqui ou ali, que o que não me falta são locais de expansão livre e de desgaste lento. Foi um regalo poucochinho, regado a café forte sem açúcar para atenuar o pó doce e branquinho que jorrava do folhado a cada dentada, mais ou menos satisfeita, ligeiramente sorridente, parcamente deliciada. Sai de lá quase regalada, mas vai daí que pouco depois, o maldito do desejo voltou a crescer, direccionado ao esgotado palmier coberto que me persegue o espírito desde o dia em que o escolhi. Ora, todos nós sabemos que as perseguições de espírito são qualquer coisa de potência igual às perseguições à séria, isto para não dizer superiores, passo a explicar: podem até começar devagarinho, frouxas e tímidas enroladas num recanto miserável, como que a dormir quase sossegadas. Tornam-se robustas com o tempo corrente, bastantes o suficiente para que o corpo todo as sintas e as viva em suspiritos constantes e impertinentes, um estorvo à tranquilidade, careço tanto de um sossego maior. No rigor da incapacidade do domínio cedemos sempre, e das duas uma, ou acalmamos ou desiludimos. São sempre estes os cúmulos de qualquer ânsia.
(Muitas vezes uso um truque, cedo de uma vez antes da vontade se tornar uma hecatombe. O palmier de hoje, que havia, não me enchia as medidas, foi só isso. Magro, definhado, quase sem doce de ovos entre o folhado e o açúcar, não se admite uma míngua assim. A boca estava-me num sabor estranhíssimo, entre a fome e a vontade, acabei por engolir um pastel de coco e morder a língua, que agora me sangra em fio. Não há penso que a segure, nem outro acepipe que a acalme. )
(Muitas vezes uso um truque, cedo de uma vez antes da vontade se tornar uma hecatombe. O palmier de hoje, que havia, não me enchia as medidas, foi só isso. Magro, definhado, quase sem doce de ovos entre o folhado e o açúcar, não se admite uma míngua assim. A boca estava-me num sabor estranhíssimo, entre a fome e a vontade, acabei por engolir um pastel de coco e morder a língua, que agora me sangra em fio. Não há penso que a segure, nem outro acepipe que a acalme. )
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
descansos
(Audrey Hepburn)
Agosto é do descanso, nota-se nas pessoas, nota-se nos jornais, nota-se nas ruas e nos dias de calor intenso, nota-se nos bichos deitados no quente do chão. Descansam as doenças, descansam os médicos, descansam as estradas e as passadeiras para peões, descansam as ideias que dormem até Setembro, quando a escola começa e o trabalho reage à morte do fastio. A blogoesfera na generalidade, também dorme. As ideias, fraquinhas, escorrem dos dedos molengas e saem numas linhas que ocupam um espaço virtual aborrecido e enfadonho, falo por mim. Raramente releio os meus textos, mas ultimamente, e se o fizer, enfastio-me. Há honrosos blogues excepcionais que mantém o vigor, verdadeiras lufadas de ar fresco no meio de um atlântico mortiço no pasmo da mornidão, atestamentos mais do que suficientes para que saibamos que o calor também pode servir para um ou outro apontamento de interesse, ainda que possa ser domingueiro, veraneante, parodiante. No outro lado, naquele onde se escreve sem vontade e sem ter de quê, nascem uns conjuntinhos estranhos e desenxabidos condecorados a bocejos persistentes, sobreviventes aos dias sem o adorno das pérolas e dos sapatos altos, do risco preto ou do bâton encarnado, totalmente imperdoáveis, impensáveis, desnecessários. Escrever sem vontade e sem ter de quê deveria ser proibido. Já que a mão que nos modera, em Agosto dorme também.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
procura activa de emprego,
ou de como a graça, pode não ter graça nenhuma...
(Deixado há pouco na caixa do correio, ao lado da campainha que daria acesso directo a uma entrada no edifício e a um atendimento com cara, nomes e preenchimento de uma ficha de inscrição.)
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
silêncios
Sei exactamente em que data se iniciou a clausura e conheço-lhe as razões como à palma da minha mão, que apesar de vincada a sulcos profundíssimos é mais minha do que o próprio chão. Sei onde se inicia cada traço, onde morre cada gesto, onde vive cada palavra e onde mora cada lágrima. Sei-lhe as intensidades, as fraquezas, as espinhas e os predicados, leio-lhe os sorrisos e as felicidades, encontro-lhe os segredos e tolero-lhe as vaidades. As razões, assevero-vos, são tão basilares à minha existência como o ar que respiro ao segundo, sem quebra ou interrupção. Pouco se abrange deste excesso, talhado em trajectos antagónicos que expulso pela boca por prenúncio, quiçá presunção. Eu é que sei. É tudo tão claro como os silêncios das minhas mãos.
domingo, 4 de agosto de 2013
...
Os sítios onde as mulheres tentam ficar mais bonitas assustam quaisquer olhos. Saio sempre de lá enfastiada, farta, cansada de cabelos armados em molas coloridas, pincéis com tinta, frasquinhos de vernizes berrantes, pés calejados com a mania de que são gente, panelinhas de cera encardidas, revistas cor de rosa, louras platinadas, chinelos de enfiar no dedo, madeixas de gosto duvidoso, pinças, frascos que fazem milagres e vidas dos outros. Essas últimas vomito-as logo à porta de saída. O resto destilo com jeitinho e em pouco tempo passa.
sábado, 3 de agosto de 2013
sabedorias
A Henriqueta não é rica, a Henriqueta é sábia. Gosto da Henriqueta e gosto de sábios. Um dia um amiguinho do meu filho disse que ele era sábio por qualquer coisa insignificante que agora não me lembro. O meu filho assustou-se e perguntou-me, e agora mãe?, cheio de responsabilidade. Já não me lembro o que lhe respondi, mas lembro-me de pensar que gostava muito que ele fosse mesmo. Os sábios dos desenhos animados para além de saberem muito são extremamente felizes. Na vida real penso que não existem. Nem os sábios, nem os extremamente felizes.
quinta-feira, 1 de agosto de 2013
abusos
Não falo de política porque sei somente o essencial. Sequer falo grandemente de moda, muito embora seja pessoa para me enfiar num bom sapato prêt-à-porter. Espanta-me pois a frequência com que encontro gente a falar de emoções, como se fosse legítima a transformação de teorias de senso comum em verdades absolutas. Espanta-me especialmente a suposta irrevogabilidade. Francamente, se querem formar conclusões falem na primeira pessoa do singular. O resto? O resto é abusivo, persecutório, invasivo e potencialmente falso.
...
Há dias em que me dão umas saudades monstras de comer feijões com azeite. Ou então se calhar nem é bem disso, é da avó, até porque é verão e não é tempo de feijão ( levavam sal grosso por cima, a comida sem sal não tem gracinha nenhuma). Depois também me saberia bem pão com doce de tomate vermelhinho. Eventualmente não serão saudades, será gulodice ( a vida sem gulodices é amarga, ouço dizer. Nessas alturas, do pão com doce, a praia tinha um cheiro diferente e o sol brilhava no mar em espelho. Eu não tinha frio e comia o que me apetecia sem encolher a barriga. Tinha uns baldes e umas formas sempre iguais que todos os anos eram novidade. A Olá também me visitava, intercalada com umas latas verdes da pastelaria Batel de onde saíam bolas de berlim e arrofadas doces. A areia era grossa e cheirava a mar e a alegria era uma realidade tão próxima da felicidade, que a única coisa que eu não percebo é o porquê dessa inconsciência até ao dia em que tudo deixa de ser tão fácil.) E afinal, são saudades.
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